A Ucrânia foi dividida pela luta civil. Os meses do inverno de 2014 testemunharam protestos anti-governo de três meses na praça de Kyiv conhecida como Maidan, os quais levaram à renúncia forçada do presidente ucraniano Viktor Yanukovych, após quatro anos no cargo. A esse fato, seguiu-se a anexação da Criméia pela Rússia e à guerra de fato no leste do país, que segue enquanto escrevo.
Estes eventos são mais que políticos. Eles tocam em experiências mais fundamentais de consciência e dignidade, refletindo um despertar da sociedade civil - e uma reação que busca um retorno a uma vida pública dominada pelo estado.
O futuro do país está em jogo: tanto a sobrevivência política da minha nação quanto o caráter moral e espiritual do meu povo. O que é necessário hoje, não apenas na Ucrânia mas em todos os países pós-soviéticos, é uma liderança eclesiástica com ideias claras a respeito dos perigos de uma relação próxima demais entre o testemunho cristão e o poder do estado, a qual resulta na substituição da teologia pela ideologia. O único grande imperativo é encorajar e engajar a sociedade civil.
A Igreja Ortodoxa Ucraniana em comunhão com o Patriarcado de Moscou (IOU-PM) é a maior igreja do país, e a única reconhecida pela irmandade das igrejas ortodoxas mundiais. A segunda maior é o Patriarcado de Kyiv (IOU-PK), que foi fundado em 1992. A menor delas é a Igreja Ortodoxa Ucraniana Autocéfala (IOUA), fundada em 1918 logo após a Revolução Russa. Finalmente, há a Igreja Greco-Católica Ucraniana, uma igreja em união com bispo de Roma e que segue o rito oriental.
Desde o fim da União Soviética, nenhuma dessas igrejas fez muito para encorajar a sociedade civil. Em anos recentes todas elas estavam, em maior ou menor medida, colaborando com o regime de Yanukovych. Nenhuma se afastou muito do padrão de relações entre a Igreja e o estado comum na Ortodoxia pós-imperial que ainda busca os sonhos de uma sinfonia bizantina, o ideal da igreja e o estado trabalhando juntos.
Esse padrão trata o poder do estado como meio indispensável para os líderes da igreja influenciarem a sociedade. Também encoraja uma mentalidade de acordos cooperativos que opera sobre as mentes das pessoas: se apoiarmos suas ambições políticas, você apoiará nossos projetos de construção da igreja e outras ambições espirituais para a nação. Algumas das igrejas, como a IOU-PM, são mais alinhadas com o estado; outras como a IOU-PK, são menos. Até a Igreja Greco-Católica, mais avançada tanto na sua ação quanto educação social, não perturba o estado com seus ensinos morais. Em resumo: o cristianismo ucraniano tem apoiado amplamente uma pressuposição tradicional ortodoxa de que o estado é o único parceiro viável para a Igreja. A sociedade civil tem sido efetivamente ignorada.
Entretanto, a Maidan forçou todas as igrejas a reconsiderarem essa abordagem. Um grande número de pessoas de diferentes setores da sociedade reuniram-se para expressar suas identidades como cidadãos acima e contra os aparelhos de estado dominados por Yanukovych e sua companheirada. Uma nova forma de identidade social passou a existir. Os manifestantes da Maidan constituíram a si mesmos como um corpo social capaz de ação contra o estado por amor da aspiração de cada ser humano por dignidade. Estavam dando à luz uma sociedade civil independente com a qual deve-se tratar em seus próprios termos. Diante de uma sociedade civil emergente, as igrejas não poderiam mais pressupor que poderiam encontrar sua posição na sociedade tratando apenas com oficiais do governo.
A igreja mais ativa no apoio ao despertar social foi a Igreja Greco-Católica Ucraniana. O Patriarcado de Kyiv (IOU-PK) foi mais relutante em alinhar-se com os manifestantes mas acabou apoiando-os com firmeza, oferecendo-lhes o Mosteiro de S. Miguel como hospital e abrigo para refugiarem-se da polícia de choque. A Igreja Ortodoxa sob o Patriarcado de Moscou tentou manter neutralidade, mas alguns de seus padres colocaram-se ao lado da Maidan. No fim, com a queda do regime, a IOU-PM mudou de posição e apoiou o governo interino.
A resposta lenta da IOU-PM, minha própria igreja, reflete o fato de que é o maior e mais bem estabelecido braço da Ortodoxia na Ucrânia. Ela tem se beneficiado de uma posição de influência social desde o colapso da União Soviética e se tornou acomodada com uma relação próxima com o poder estatal. Esse paradigma é comum nas sociedades pós-soviéticas, mas também é perigoso. Quando uma sociedade se emancipa do estado, como está acontecendo na Ucrânia, a Igreja corre o risco de ficar isolada. Como parceira íntima do regime, a Igreja se torna associada com seus crimes. Quando o regime cai, a Igreja e os cristãos ficam desacreditados.
Foi isso que ocorreu com Igreja Ortodoxa da Grécia depois da Junta Militar de 1967-1974. Os regimes de Yanukovych e dos coronéis gregos eram diferentes, mas seus métodos de estabelecer uma ditadura foram similares. Ambos usurparam o poder, mudaram a constituição, corromperam as cortes e dependiam da polícia para suprimir a dissidência. A Junta na Grécia forçou a renúncia do velho e doente Arcebispo de Atenas, Crisóstomos II Hatzistaurou, promovendo em seu lugar o jovem arquimandrita Hyeronymos Kotsonas; substituiu o sínodo canônico da Igreja com o não-canônico sínodo "Aristindin"; e substituiu os bispos que os desagradavam pelos seus preferidos.
Os paralelos com a Ucrânia são notáveis. A Junta grega chegou ao fim com a insurgência de estudantes na Universidade Politécnica de Atenas de Novembro de 1973, e a Maidan se tornou ativa depois que estudantes de Kyiv foram agredidos na noite de 30 de novembro de 2013, exatamente 40 anos depois. Tanto a Junta grega como o governo de Yanukovych se declaravam próximos da Igreja e protetores de seus interesses, mas ambos violaram seus ensinos básicos.
No curso da primeira campanha presidencial em 2004, Yanukovych dependia pesadamente do apoio da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou. Ele perdeu a eleição por causa da Revolução Laranja, o levante social que forçou o anulamento dos resultados produzidos pela corrupção e fraude eleitorais. Em 2009, ele ganhou e declarou seu apoio à IOU-PM. Mas em 2012, enquanto se direcionava para a reeleição, ele começou a intervir nas questões da Igreja. Ele decidiu substituir o primaz, Metropolita Volodymyr Sabodan, por alguém mais leal a si mesmo. O primaz, entretanto, não se curvou e manteve sua posição. Frustrado, mas ainda determinado, Yanukovych apontou um companheiro para atuar como "supervisor" da IOU-PM. E isso era parte de um programa maior de instalar observadores não-oficiais para monitorar todas as áreas da sociedade ucraniana. Era um "modelo mafioso" que permitiria a qualquer homem de negócios leal a Yanukovych intrometer-se nas questões da igreja.
Outras igrejas, especialmente a Igreja Greco-Católica, sofreram o mesmo destino. Já em maio de 2010, a Universidade Católica Ucraniana de Lviv estava sob pressão. Em janeiro de 2014, o Ministro da Cultura enviou uma carta ao Arcebispo Sviatoslav Shevchuk avisando-o de que a Igreja Greco-Católica Ucraniana estava em perigo de perder seu registro estatal. Na medida em que Yanukovych estabeleceu seu controle sobre a sociedade, tornando-a uma extensão do aparelho estatal, as igrejas que outrora se viam como parceiras, tornaram-se vítimas do regime - e todas possuíam motivos para condená-lo.
Nem todas o fizeram imediatamente. Por um longo tempo, a Igreja Ucraniana do Patriarcado de Moscou demonstrou pouca insatisfação com o regime. Isso continuou sendo verdade mesmo quando os capangas de Yanukovych começaram a agredir os manifestantes.
Tristemente, este comportamento ecoa exemplos anteriores da Igreja da Grécia, que fingiu não ver as inúmeras violações das leis e dos direitos humanos, crendo ser mais prudente apoiar a Junta. Como resultado, depois do colapso do governo, a Igreja Grega perdeu sua credibilidade na sociedade grega. Mesmo depois de quarenta anos, ela ainda é acusada de colaboracionismo com a ditadura. Eu temo que a IOU-PM possa sofrer o mesmo destino na Ucrânia nos anos por vir. Tal resultado, porém, não é inevitável. Um futuro mais positivo é possível para a IOU-PM, se ela inspirar-se pela Maidan e transformar a tradicional parceria Igreja-estado em uma visão de Igreja que se relaciona primariamente com a sociedade civil, e através desta relação é que influencia o estado.
Hoje, porém, a IOU-PM está apenas piorando a situação. Suas paróquias e mosteiros estão apoiando as milícias rebeldes no leste da Ucrânia, algumas vezes abertamente, algumas vezes acobertadamente, de modo codificado. Oficialmente, minha igreja defende a integridade do país e condena toda forma de violência. Ela não disciplina, porém, de forma significativa os padres e outros que justificam e mesmo encorajam o separatismo e o terrorismo.
Existe mais em jogo aqui do que princípios morais, por mais importantes que sejam. A "primavera russa" no leste é a revolução do paternalismo. Seu ideal, frequentemente não-expresso, é de um sistema de organização social abrangente, direcionado para o estado, que protege os indivíduos dos riscos da liberdade. Ela reflete a nostalgia por uma época em que o estado assumia a responsabilidade por todos os aspectos da vida, uma época quando o estado *era* a sociedade. Seria errado interpretar esta nostalgia como um simples desejo de restaurar o antigo sistema soviético. A ideologia neo-soviética é bem diferente da antiga ideologia comunista que esposava um ateísmo oficial. A nostalgia por um passado seguro e estável também toma algo da já distante ideologia da Rússia imperial.
Isso fica evidente na rebelião em curso, patrocinada pelo estado russo, que se expressa com símbolos e palavras-chave do Cristianismo Ortodoxo. A ideologia do "mundo russo" se tornou uma força mobilizadora para os separatistas matarem e torturarem. Há um vídeo no Youtube, por exemplo, no qual um monge ensina soldados recém-recrutados do "Exército Russo Ortodoxo" porque e como usar suas armas: "O anticristo está vindo para a Santa Rússia. O que estamos vendo agora é primariamente uma guerra espiritual, porque o Anticristo vem para a Santa Rússia, contra a Ortodoxia". Então o monge passa a lições práticas sobre como ganhar a guerra contra o Anticristo, o qual ele aparentemente associa com o Ocidente e com os cristãos ortodoxos ucranianos que buscam manter a integridade territorial de seu país: "Eu vou ensinar para vocês como carregar os cartuchos - para que as balas possam voar até o objetivo e destruir o inimigo". Ele continua, "Então os Santos Padres nos ensinam que ao pegarmos os cartuchos e carregarmos nossas armas devemos orar assim: Bendita Mãe de Deus, salva-nos. Santo Padre Nicolau, orai por nós. Santo Tsar Nicolau, orai por nós..."
Este uso perverso da oração ilustra como a ideologia do "mundo russo" adota as poderosas tradições do cristianismo ortodoxo, mas de uma forma completamente antitética ao seu gênio cristão. Demonstra como a fé foi instrumentalizada e politizada. A longa tradição ortodoxa de crítica à teologia ocidental, da qual alguns aspectos são legítimos e outros exagerados, foi transformada em uma simplória agenda anti-ocidental. Essa ideologia de Oriente contra Ocidente encoraja o sacrifício de vidas humanas pela causa de uma agenda geopolítica. Infelizmente, muitos hierarcas da igreja na Ucrânia e em outros lugares participam dessa agenda e hesitam em articular uma adequada avaliação moral da guerra no leste de meu país.
As consequências têm sido letais. Têm ocorrido inúmeros sequestros e assassinatos de cristãos não-ortodoxos na região de Donbass ao leste da Ucrânia, onde o conflito armado continua. O padre Greco-Católico Tikhon Kulbaka, secretário do Conselho Regional de Igrejas, foi sequestrado e torturado pelo tal "Exército Ortodoxo Russo" até ser liberto por uma campanha popular em seu favor. Menos sorte tiveram quatro membros da igreja protestante Transfiguração do Senhor, que foram sequestrados no dia 8 de junho e assassinados no dia seguinte. Em uma revelação notável, o conselheiro-mor da assim chamada "República Popular de Donetsk", Igor Druz, disse à BBC que as forças rebeldes haviam executado pessoas desarmadas, afirmando que tal atrocidade ajudaria a construir um novo "estado social" baseado em "valores cristãos". Tal retórica lamentavelmente se assemelha a afirmações recentemente promulgadas pela igreja oficial.
O Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski representa o típico governante do estado neo-soviético. Ele liberta seus súditos do peso da liberdade. Até agora, a maioria das pessoas nas sociedades pós-soviéticas parecem felizes em continuar sob a direção da mão pesada do estado. As igrejas frequentemente abençoam as práticas coercitivas dos "grandes inquisidores" pós-soviéticos. Eles ensinam que a liberdade é frequentemente abusada, e para limitar os abusos da liberdade, rapidamente acrescentam que a própria liberdade deve ser desencorajada. Isso fortalece o autoritarismo e sacraliza a cultura de impunidade e de controle governamental que permitiu o florescimento de uma cleptocracia. Depois da Maidan, porém, as igrejas na Ucrânia devem retornar ao ensino do Evangelho, ou pelo menos ao de Dostoiévski, sobre a liberdade. Precisam declarar que a recusa da liberdade é um pecado. Essa recusa destrói nossa relação com Deus e com o nosso próximo. Também leva a inúmeras violações de direitos e dignidades. As igrejas pós-soviéticas devem se tornar "escolas de liberdade", que ensinam os cidadãos a exercerem sua liberdade de um modo responsável que leve a uma confiança e propósito comum com a sociedade civil.
No dia 03 de janeiro de 2014, o jornal The Guardian publicou uma carta, assinada por muitos dos principais intelectuais do mundo. "Hoje a Maidan ucraniana representa a Europa no seu melhor - aquilo que muitos pensadores no passado e no presente entendem ser os valores europeus fundamentais". A carta segue sugerindo que "a Ucrânia precisa de algo como um Plano Marshall que garanta sua transformação em uma democracia completa e uma sociedade com direitos civis assegurados". É importante lembrar que o Plano Marshall original continha mais do que ajuda financeira. Ele pressupunha a condenação de todas as ideologias que levaram ao fascismo e ao nazismo. A Ucrânia de hoje precisa de uma condenação semelhante das práticas cleptocráticas do neo-sovietismo e de sua ideologia de uma sociedade civil controlada pelo estado.
Isso não será fácil de se alcançar em um país que primeiro foi degradado pelo comunismo e depois desmoralizado por duas décadas de corrupção, companheiragem e ideologias neo-soviéticas. No seu livro Aufbrüche zu neuen Ufern (Avanço para uma Nova Dimensão), Heike Springhart aponta o caminho para frente em um contexto social profundamente comprometido pelo passado. Ela descreve o papel que as igrejas cristãs tiveram na reeducação da sociedade alemã no pós-guerra. Embora a maioria das igrejas alemãs tenham colaborado com o partido nazista, no fim da guerra, elas eram a única instituição no país que tinha o potencial de curar as feridas infligidas pelo nazismo. Elas representavam o pouco de "espaços limpos" que havia sobrado na alma alemã. Na Ucrânia, as igrejas podem desempenhar o mesmo papel. Elas podem servir como "espaços limpos" na psiquê ucraniana onde um novo futuro pode ser imaginado. A questão é se irão fazê-lo ou não.
Nota: “Terras de Sangue” faz alusão ao livro não-traduzido para o português "Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin", no qual o historiador Tymothy D. Snyder demonstra como os regimes nazista e soviético colaboraram no extermínio de mais de 14 milhões de pessoas na região da Polônia, Ucrânia, Bielorrússia, Rússia e estados bálticos.
O Pe. Cyril Hovorun é pesquisador na Universidade de Yale. Serviu como presidente do Departamento de Relações Exteriores da Igreja Ortodoxa Ucraniana e como primeiro vice-presidente do Comitê Educacional do Patriarcado de Moscou. É acadêmico em patrística e eclesiologia.
Publicado na revista First Things, Outubro 2014, p. 41-44.
Tradução: Leitor Fabio Lins Leite