quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A Cidade e as Estrelas


No século 20, vimos surgir um sub-estilo de ficção que trata exclusivamente de explorações de novas descrições do mito da Caverna de Platão.

São estórias que descrevem seus personagens completamente imersos em mundos que de alguma forma foram planejados para aprisionar seus habitantes, tolhindo sua própria humanidade, ou que ao menos, ainda que inadvertidamente, acabam por fazê-lo.

São livros como 1984, Admirável Mundo Novo, A Cidade e as Estrelas, filmes como Matrix, O Show de Truman, seriados como Lost, Arquivo X. O que todos estas obras têm em comum é o mote principal do personagem imerso em uma rede de mentiras, às vezes tão radical, que o mundo em si é uma mentira.

Eu posso estar enganado, mas a primeira obra que aponta nesta direção é Othelo de Shakespeare. Ali, Othelo é enredado em uma teia de falsidades engedrada por Iago. Iago domina completamente o mundo subjetivo de Othelo, que passa a viver em uma realidade virtual primitiva.

Depois temos As Viagens de Gulliver, na qual não existe uma rede de mentiras propriamente ditas, mas os habitantes de cada país são absolutamente provincianos em sua perspectiva de vida, o que não deixa de ser uma prisão subjetiva virtual.

Em todas estas obras, quando há um planejador da mentira, ele é, ainda que bem intencionado, representado como profundamente maligno ou, ao menos, um sociopata. Se o responsável for a sociedade inteira, esta é apresentada como doente e auto-destrutiva, digna de reprovação.

A tentação, o pecado fundamental que tais obras expõem é talvez um dos mais antigos da humanidade. No primeiro milênio do Cristianismo foi exercitado principalmente pelos gnósticos. Trata-se da soberba de um ou de muitos em tentar imprimir no mundo real o mundo de sua imaginação e pensamento.

Para tais pessoas, o mundo real é detestável e igualmente detestáveis são os elementos da realidade que porventura encontram.

Iago detesteva a felicidade de Otelo e a ascenção de Cássio. Por isso cria seu mundo particular com o fim exclusivo de destruí-los. Os provincianos detestam o mundo exterior. O ódio ao mundo tal como ele é caracteriza e justifica a criação do mundo virtual que deve substituí-lo na subjetividade das pessoas dado que mudar o próprio mundo real em si é impossível. O estado de queda, ao invés de gerar maior vontade de redenção projeta sobre inocentes sua própria condição descendente e, acentuando-a, busca detê-la através da destruição do falso causador.

Nossa época viu a ascensão de tais obras simplesmente porque foi o século no qual a realidade foi mais detestável para todos os envolvidos nela.

A prosperidade de muitos países que pela primeira vez tiraram o homem da miséria foi um dos mais destestados elementos do século.

As conquistas da ciência, os ápices espirituais da religião...nossa época detestou de tudo um pouco e muitos foram os que resolveram que "outro mundo é possível" - nazistas, fascistas, comunistas, socialistas - e não hesitaram em matar em nome desse sonho sufocante.

Cada nova geração, ao contemplar as mortes geradas pela anterior, e julgando-se naturalmente mais genial, sonha então um novo mundo e joga-o sobre nós, através de milhões de Iagos recitando para si mesmos sua cantilena " And what's he then that says I play the villain? When this advice is free I give and honest," (Quem dirá pois que faço o papel de vilão? Posto que meus conselhos são gratuitos e honestos)

Pois nada há mais detestável do que o excelente sempre tomado pelos que o desconhecem como vil. A humanidade matou e mata seus melhores homens e o mesmo faz com suas perspectivas.

Ser bom é tolerável, ser excelente é insuportável. Vemos isso acontecer não apenas nas grandes coisas. Também nas pequenas o fenômeno é comum. São "superiores" e "amigos" que sabotam o crescimento do próximo , colegas que sequer teriam algo a perder com o crescimento do outro e ainda assim o derrubam.

Tudo por vaidade, diria o velho Salomão. Não sei. Sei porém que o que me atrai nas estórias que mencionei é a possibilidade de fuga dessa pseudo-realidade abissal.

É bem verdade que nem todas a tem, mas a simples escrita dela já pressupõe uma mente que não se deixa enredar. Existe uma porta no céu artificial de Truman. Existe uma saída.

Não como os gnósticos pensavam, uma saída do mundo mal falso que seria o mundo material para um bom mundo espiritual que seria o verdadeiro. Existe a saída do falso mundo da nossa subjetividade pessoal e coletiva, controlado por ilusões, para o bom mundo real e objetivo. Tal é a liberdade verdadeira e, creio, o primeiro passo de nossa parta na salvação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário