quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Império ou República Bizantina?

Constantinopla - Idade Média


Análise do livro: The Byzantine Republic: People and Power in New Rome, Anthony Kaldellis

por BRIAN PATRICK MITCHELL

Os livros-textos dizem que o Império Bizantino era uma autocracia teocrática unindo a igreja e o estado sob um imperador todo-poderoso que os bizantinos acreditavam ser o vice-rei e vigário de Deus. Tudo besteira, diz Anthony Kaldellis, professor de antiguidade clássica na Universidade Estadual de Ohio. O Império Bizantino era uma continuação do Império Romano e mesmo da República Romana. Sua ideologia política era fundamentalmente secular e ancorada na antiga crença republicana romana de que o governo existe para servir ao bem comum. Seu povo não mais tinha um papel na eleição dos líderes e legisladores, mas frequentemente tinham um papel extra-legal em elevar e destruir imperadores, cuja legitimidade dependia da popularidade e não de uma alegação de direito divino ou correção constitucional. Os imperadores governavam pragmaticamente e não fanaticamente, frequentemente decepcionando a Igreja para a agradar o povo. 

Isso é um ar fresco para os cristãos ortodoxos, que têm tido que aturar a acusação da teocracia bizantina por mais tempo do que os cristãos ocidentais tem aguentado as acusações de crusadas e inquisições. Mas "The Byzantine Republic" de Kaldellis também provê uma crítica útil do pensamento político ocidental moderno, assim como um portentoso, ainda que inadvertido, insight sobre o pensamento democrático de centro-esquerda e para onde ele vai nos levar. 

Seu livro é francamente um ataque revisionista no campo dos estudos bizantinos, o qual tem perpetuado antigos preconceitos ocidentais que contradizem registros históricos. Kaldellis mira principalmente nos acadêmicos da década de 30 e seus imitadores, mas as raízes do preconceito vão até muito antes, até a propaganda anti-ortodoxa da Idade Média. Os ortodoxos bizantinos recusam-se a reconhecer a supremacia do Papa de Roma sobre todas as coisas sagradas e seculares, e permitiam ao seu imperador muito mais autoridade sobre a Igreja do que os partidários do papado toleravam. Mais tarde, durante o Iluminismo, enquanto o Ocidente se transformava para excluir a religião da política, os bizantinos foram tomados como o principal exemplo de "cesaropapismo" por conta da equivocada crença de que o imperador bizantino governava tanto como rei e papa, sem separação da igreja e do estado. 

Na medida em que o pensamento ocidental evoluía, mais acusações foram lançadas contra o modelo bizantino. O império não possuía uma constituição por escrito, enumerando direitos, separações de poderes, processos democráticos, nem nenhum limite explícito à autoridade do imperador, que parecia governar por direito divino como um monarca absoluto. À essa altura, o império já não existia, então os ocidentais sem nenhum conhecimento de grego ou acesso a documentos relevantes não tinham como conferir a realidade histórica em face das alegações depreciativas de Edward Gibbon e outros, para os quais os bizantinos serviam como um conveniente ponto de partida para versão Whig da história: um pesadelo primevo de despotismo supersticioso do qual o mundo ocidental despertou e se libertou. 

Alguns acadêmicos do século 20, mais gentis, sugeriram modestas correções na narrativa convencional, negando acusações de cesaropapismo e celebrando a arte e a cultura bizantinas, mas nenhum foi tão longe quanto Kaldellis em asseverar a base secular da política bizantina ou em demonstrar a cegueira dos historiadores ocidentais que têm interpretado a política de acordo exclusivamente com as categorias de pensamento do Iluminismo. 

Ao ler, erroneamente, a história romana, os primeiros teóricos ocidentais modernos dividiram o governo em duas categorias básicas, monarquias e repúblicas, definindo a última como uma pólis auto-governada sem um monarca e categorizando as monarquias ora como absolutas, ora como constitucionais. Conforme explica Kaldellis, os antigos gregos e romanos viam as coisas de modo diferente. Suas duas categorias básicas eram reinos e comunidades. Um reino, na experiência deles, era a propriedade de um rei, governada por sua força para sua própria satisfação. Uma comunidade - res publica em latim, politeia em grego, era uma pólis independente, que podia ser governada de várias formas, para o bem de todos. Comunidades, portanto, podiam ser monarquias, aristocracias ou democracias. O próprio Cícero confirma isso, mesmo enquanto lamentava a diminuição do poder senatorial. 

A história padrão de que a república romana terminara com a ascensão de César Augusto a imperador estaria, portanto, simplesmente errada, diz Kaldellis. A república sobreviveu, em uma nova fase, no Principado no lugar do antigo Consulado. Os historiadores chamam a terceira fase da república de Dominato, período durante o qual imperadores militares, governando desde onde fosse necessário para fins militares, pela primeira vez na história romana foram chamados de Domine, ou "Senhor". A quarta, de longe a mais longa e última fase foi Bizâncio, durando do século 5 ao 15, durante a qual os imperadores governaram como civis desde a cidade oficialmente nomeada Nova Roma, mas comumente chamada de Constantinopla ("Cidade do Constantino") e fundada originalmente como Byzantion (Byzantium em latim). 

Durante todo esse milênio, o povo do império chamava a si mesmo de romanos. O termo "bizantino" é uma invenção ocidental moderna. E durante todo o tempo esses romanos identificavam seu império como uma res publica ou politeia, vangloriando-se que diferente de outros impérios, o deles era comprometido com o bem comum. Do início ao fim, os imperadores romanos "bizantinos" eram obrigados a justificar suas ações não com apelos ao direito divino ou lei divina, mas ao bem comum, e o árbitro máximo do bem comum era a politeia, a qual incluía todo mundo - a aristocracia, a burocracia, os exércitos, o clero e as várias classes de pessoas: mercadores, comerciantes, fazendeiros, etc. 

Qualquer um desses podia desafiar o direito de governo do imperador em termos de seu fracasso em servir ao bem comum. Assim, os imperadores bizantinos viviam com medo do povo e faziam todo o possível para mantê-lo feliz, mostrando-se como servidores públicos trabalhando incansavelmente pelo benefício do público. 

Por outro lado, o povo não tinha muito medo do imperador. Comumente eram irreverentes e desleais, abusando verbalmente do imperador em público, e até em sua presença, e desconsiderando leis de que não gostavam. "A história bizantina está cheia de casos de homens e mulheres que se recusavam a obedecer ordens do imperador, quase sempre por motivos religiosos", escreve Kaldellis. Com uma única exceção, revoltas populares tinham sucesso em forçar os imperadores a realizar concessões ou, resistindo, serem forçados à deposição. A única exceção nos mil anos do império foi a revolta de Nika de 532, quando Justiniano, o Grande, por insistência da Imperatriz Teodora, enviou soldados para eliminar a turba assassina reunida no Hipódromo para aclamar outro imperador. Os únicos casos anteriores de tal brutalidade ocorreram ainda no Dominato dos séculos 3 e 4. 

Um elemento mais difícil de ser analisado por ocidentais modernos é a relação entre a autoridade o imperador e as leis do império. Romanos de todas as idades orgulhavam-se de seu respeito pelas leis, o que estava fortemente relacionado com sua crença no bem comum, e uma das características da romanidade que eles acreditavam colocarem-nos acima das outras nações. Esperava-se também que seus imperadores também respeitassem as leis, e mesmo assim não havia lei que não pudessem mudar. Aos olhos ocidentais, isso fazia do imperador não só um autocrata cuja palavra era lei, mas um autocrata sem limites - um monarca absoluto. 

Essa perspectiva comum no ocidente baseia-se menos em Bizâncio do que no "Novo Absolutismo" do início do ocidente moderno, o qual desenvolveu-se a partir dos primeiros esforços dos príncipes ocidentais de teorizar suas alegações de "soberania" em face de reivindicações papais sobre a mesma. Com a Reforma Protestante, essas reinvindicações peculiarmente ocidentais de soberania tornaram-se mais urgentes e expansivas, gerando justificativas tanto católicas quanto protestantes para o "Direito Divino dos Reis", de acordo com o qual o rei, como soberano, não responde a ninguém a não ser a Deus. Para o católico francês Jacques-Benigne Bossuet, o rei personificava o estado: "Tout l´État est en la personne du prince", ele escreveu, ou como diria o Rei Sol, "L'État c´est moi." 

Contra esse Novo Absolutismo surgiram contra-argumentos sujeitando o rei a outros soberanos: a common law (direito comum) anglo-saxã, direitos naturais, constituições codificadas ou não codificadas, a vontade do povo. Contendas religiosas e políticas conduziram os ocidentais a pólos opostos do idealismo político, contrapondo ao idealismo monárquico do Direito Divino ao idealismo "republicano" anti-monárquico concebido sob várias formas. Os argumentos em favor deste último nos são mais conhecidos hoje em dia. Os Pais Fundadores dos EUA utilizaram todos desse último tipo, com quase nenhuma consideração por consistência e sem resolver de fato o problema teórico e prático da soberania limitada. Pois se o povo é soberano, o que nos protegerá do absolutismo democrático já que o povo decide que leis fazer, que direitos respeitar, e mesmo como ler a constituição? Quem dirá ao povo que ele está errado, e quem vai detê-lo quando ele não escuta? 

Os bizantinos nunca se importaram em fazer tais perguntas porque nunca precisaram. Para eles a preocupação central não era a fonte do governo - soberania - mas, diz Kaldellis, o propósito do governo. Portanto eles não absolutizavam o imperador. Eles sabiam que ele era um mero mortal e um pecador que respondia tanto a Deus e à politeia. Eles não acreditavam em Direito Divino. 

Eles acreditavam que Deus ordenava os governantes como "agente(s) da justiça para punir quem pratica o mal" (Romanos 13:4), mas também sabiam que Deus costumava desordenar governantes por seus próprios motivos. Como muitos povos eram tentados a acreditar em sangue real, mas isso não impedia que destronassem imperadores incompetentes "nascidos no púrpura". E se qualquer imperador bizantino tivesse dito, "o estado sou eu", todos os que tivessem ouvido o teriam por louco. 

Sem um ideal monárquico, os bizantinos nunca precisaram de um ideal anti-monárquico. Eles nunca absolutizaram os direitos naturais, ou a lei romana, ou mesmo o povo romano. Também eles, eram meros mortais e pecadores, e o que importava mais era o bem da politeia, não a vontade do povo. Nem a vontade deles era a única vontade que importava: tinha-se que ponderar a vontade de Deus, e sabia-se que Deus normalmente dava ao povo não o que ele queria, mas o que ele precisava. Ele lidava com o povo não de acordo com princípios fixos de justiça, mas em termos do que seria melhor para a salvação da alma de cada um. O termo bizantino para isso era oikonomía e ainda éum importante aspecto da teologia pastoral cristão ortodoxa. 

A abordagem bizantina da política era igualmente "econômica". A lei suprema era a segurança da comunidade. Todo o resto era discricionário. A garantia divina do imperador como um "agente da justiça" contra o mal era entendida pragmaticamente como um dever de os governantes restringirem o mal, e não de erradicá-lo. Concessões eram feitas por "humanidade, bom senso e utilidade pública", nas palavras de Justiniano, com o entendimento de que alguns males não são facilmente criminalizáveis. Os imperadores cristãos, portanto, eram lentos em banir muitos males condenados pela igreja mas que eram populares entre as massas como a escravidão, a prostituição, a pornografia e os jogos de gladiadores. 

Kaldellis admite que o ensino cristão fundamentava o comprometimento da república bizantina com o bem comum, e ele considera a Bizâncio cristã mais republicana que as duas fases anteriores da república - o Principado e o Dominato. Mas em sua ânsia de argumentar contra a leitura convencionalmente teocrática da historia de Bizâncio, ele erra pelo lado oposto, na direção de uma leitura essencialmente secular. "A politeia romana era cristã apenas acidentalmente", ele escreve, e o resultado era um república monárquica fundamentalmente secular "mascarando-se, para si mesma tanto quanto para os outros, como uma teocracia imperial". Os bizantinos seriam confusos, dados a "modalidades conflitantes de pensamento" e de oscilar "contextualmente" entre pensamento secular e religioso. Seu pragmatismo e seu republicanismo seriam ambos produtos de um pensamento secular, em conflito com o suposto idealismo e imperialismo cristãos. 


É nesse ponto que a dependência do próprio Kaldellis em face de concepções ocidentais do cristianismo interfere com sua análise. Ele escreve, por exemplo,que "secular" é uma "categorial fundamental do pensamento cristão". Pode-se argumentar que isso seja verdade no cristianismo ocidental, o qual tende a fazer distinções bem definidas entre as categorias de sagrado e profano, natural e sobrenatural, clero e povo, sacerdócio "religioso" e "secular", autoridade espiritual e autoridade temporal, a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Mas isso não é tão obviamente verdadeiro sobre o cristianismo ortodoxo. A Ortodoxia não tem um equivalente teológico exato de "secular" e lhes parece que os católicos enfatizam demais tais categorias. 

O uso que Kaldellis faz de “secular” é ainda mais distante do pensamento ortodoxo. Ele parece limitar o pensamento cristão a ideias a respeito da religião cristã, como se todas as demais ideias não fossem cristãs e fossem, portanto, seculares. Então, quando uma fonte bizantina atribui uma vitória à intervenção divina, ela estaria pensando “religiosamente”, e quanto a mesma fonte atribui a vitória à uma estratégia superior, ela estaria pensando “secularmente”. Kaldellis portanto não entende como os cristãos bizantinos conseguiam reconciliar a deposição de um imperador pelo povo com a ordenação daquele imperador por Deus. Ele só consegue classificar a coisa de inconsistente – e mais fundamentalmente secular que cristã. 

Surpreendentemente, Kaldellis identifica Jean-Jacques Rousseau como o teórico ocidental mais próximo da tradição bizantina, citando passagens do Contrato Social que até soam vagamente bizantinas. Rousseau define a república como “qualquer estado governado por leis, qualquer que seja a forma de administração”. Ele atribui a soberania ao povo e faz do governo seus ministros. E enfatiza a importância do consenso moral e vê a necessidade de uma religião civil. Quando ele escreve que as leis mais importantes não são as que estão escritas, mas as que estão “nos corações dos cidadãos”, segundo Kaldellis, Rousseau “revela-se um pensador clássico ao invés de moderno”. 

Essa é uma leitura superficial de Rousseau. Bizâncio era uma realidade histórica concreta – um povo em particular com um passado em particular, e tradições religiosas, legais, políticas e culturais – enquanto a república de Rousseau é só a mais uma ideia teórica ocidental, baseada em uma compreensão da natureza humana e da história que é muito anti-romana, anti-cristã e anti-bizantina. Em sua república teórica, todas as questões de valor definidoras do bem comum são definidas pela “vontade geral”, a qual não tem ligação com religião, tradição, instituição, constituição, contrato ou mesmo com a realidade. O povo é livre para construir uma nova civilização da forma que acharem melhor: ele só precisam de um legislador iluminado para mostrar-lhes como. Rousseau via a si mesmo nesse papel e chegou a oferecer sua consultoria em legislação revolucionária para a Polônia e Córsega. 

Mas o que Kaldellis vê em Rousseau, a ideia de um povo expressando sua vontade do jeito bizantino, afirmando sua soberania sobre o governo extralegalmente, é o motivo pelo qual Rousseau ainda se equipara a Marx como o principal profeta do esquerdismo, e porque podemos esperar que acadêmicos de esquerda abracem a recolocação que Kaldellis faz dos bizantinos como democratas seculares. Kaldellis mostra que a democracia pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes. Para conservadores americanos, ela significa eleições regulamentadas e aderência estrita à lei escrita e precedentes legais, mas para muitos esquerdistas americanos significa protestos públicos, desobediência civil e intimidação por turbas. A esquerda entende que se apenas a vontade do povo decide o bem comum, então o punho erguido é um indicador do bem comum melhor que o voto, pois quando o sistema não satisfaz, algumas pessoas vão se revoltar e algumas não. 

Brian Patrick Mitchell é autor de Eight Ways to Run the Country e protodiácono na Igreja Ortodoxa.

http://www.theamericanconservative.com/articles/byzantine-empire-or-republic/

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