Em uma época que enfatiza a urbanização sustentável e crescimento verde em cidades ao redor do globo, faz sentido olhar para o passado para vermos se os seres humanos alguma vez realmente tentaram, e ainda mais, se construíram, uma cidade “natural”, uma na qual o humano e o natural estivessem conectados de forma que ambos florescessem. Ao que parece, novas pesquisas sugerem que Constantinopla pode ter sido essa cidade, pelo menos nas aspirações de seus habitantes.
Um mural medieval no Museu Arqueológico de Istambul, retratando as muralhas litorâneas da capital bizantina. Wikimedia |
Desde a antiguidade, os gregos acreditavam que os seres humanos poderiam alcançar seu potencial pleno apenas no contexto de uma cidade, e talvez nenhuma cidade construída por gregos tenha refletido seu ideal da polis como o elemento crucial da paideia (a formação ou educação do cidadão) do que Constantinopla. O coração e alma do Império Bizantino, Constantinopla era o nexo entre o Oriente e o Ocidente, Império e Igreja, céu e terra, homem e natureza, o velho e o novo. Mesmo depois que os turcos muçulmanos conquistaram a cidade em 1453 e até o presente, Constantinopla, agora chamada de Istambul, tem sido uma ponte entre dois mundos, seja a Europa e a Ásia, o mundo islâmico e o Ocidente, o moderno e o tradicional. Embora a capital bizantina tenha deixado de existir há mais de cinco séculos, o legado e espírito de Bizâncio continuaram e podem mesmo conter lições importantes para habitantes de cidades de nossos dias.
Em A Noética da Natureza: Filosofia Ambiental e Beleza Sacra do Visível, Bruce Foltz pergunta se Constantinopla era de fato essa “cidade natural”. Foltz, professor de filosofia no Eckerd College, examina não apenas o ambiente construído e as estruturas cívicas criadas pelos bizantinos, mas também os sistemas culturais e filosóficos mais profundos que formavam sua visão do que uma cidade deveria ser.
Constantinopla, destaca o professor, foi criada como uma “cidade sagrada” que celebrava as conexões entre os reinos divino, humano e natural como um todo integrado. Foltz diz que para os cristãos bizantinos,
A queda é uma desordem de todo o cosmos... e a redenção... uma restauração tanto da humanidade como da natureza....levando-os de volta ao seu estado paradisíaco...a humanidade (deve ser)...a criatura através da qual a imagem divina dentro de toda a criação se torna completamente realizada, o ponto nodal através do qual a criação apreende e consagra sua própria divindade interior.
Para os fiéis ortodoxos, existe uma conexão íntima entre o homem e a natureza, expressos não apenas no nível individual e comunitário, mas também na própria cidade imperial. Constantinopla, a cidade de ouro, resplandecia como um farol e paradigma para todos os que viviam no Império Bizantino e além.
O ponto focal de Constantinopla era Hagia Sophia, a Igreja da Divina Sabedoria, considerada por muitos como uma das grandes maravilhas do mundo por sua escala, complexidade e beleza. A função desta maravilha arquitetônica era simbolizar a compreensão bizantina das relações entre Deus, o homem e a natureza, e de revelar seu encontro no tempo e no espaço. Foltz a descreve assim;
A Sabedoria Divina é o Logos eterno, visto enquanto forma o cosmos e o mantém íntegro. É assim também o logos interior de cada ser que, quando plenamente realizado, une-se ao todo em um amor que deve ser compreendido ontologicamente. A Grande Igreja da Divina Sabedoria, portanto, serve para unir todos os elementos do cosmos em uma forma transfigurada, manifestando a luz interior de sua beleza divina.
Anastasis ou Ressurreição de Cristo, ícone da capela funerária da Igreja de Chora, um exemplo formidável de arquitetura e iconografia bizantina em Istambul. Wikimedia |
Quando os cidadãos de Constantinopla reuniam-se para adorer, eles entravam em um espaço desenhado para reunir o céu e a terra, e oravam “por todos (os seres vivos) e para todos”. Suas liturgias eram não apenas para edificação espiritual de indivíduos na congregação mas também pela renovação de uma visão da ordem natural, de todo o cosmo, como algo sagrado, um dom de Deus concedido à humanidade para ser valorizado e protegido. Era um encontro tanto do tempo presente quanto do futuro Reino de Deus, no qual os seres humanos e todo o mundo natural alcançam o seu potencial completo na imagem do divino.
A adoração bizantina, através de sua música mística e elaborado simbolismo, também retratava a cidade como a Jerusalém Celestial, a qual a cidade terrena de Constantinopla deveria emular e a qual os regentes bizantinos e todos os cidadãos deveriam buscar alcançar. A crença era que uma Constantinopla, forte, vibrante e, na medida do possível neste mundo caído, “santa”, poderia ligar seres humanos e natureza, as diversas nações e o Céu e a Terra.
As ramificações práticas desse ideal desdobram-se de inúmeras formas. Por exemplo, os historiadores Stephen Barthel e Christian Isendahl demonstraram que os jardins urbanos de Constantinopla, sua agricultura e sistemas de gestão de águas eram mais eficientes que os de muitas cidades modernas, principalmente por causa “das conexões próximas entre pessoas urbanas e seus sistemas de suporte a vida”, um conceito que, segundo eles, deveria ser recuperado entre cidadãos urbanos de hoje em dia.
Existem múltiplas razões pelas quais este grande experiment chegou ao seu fim, como Steve Runciman e Donald Nicol descreveram tão bem em seus trabalhos já clássicos no assunto. O modelo constantinopolitano de cidade também seria difícil de vender no mundo de hoje, particularmente no Ocidente secularizado onde o conceito bizantino de sinfonia, um sistema no qual líderes religiosos e políticos trabalham juntos para prover as necessidades e materiais do povo – é rejeitado a priori. Ainda assim, na medida em que pode servir como um modelo de uma cidade natural, Constantinopla ainda hoje permanece como uma paradigma útil para todos nós. Foltz pode estar certo quando conclui que:
Apesar de tudo, Bizâncio pode ser para nós no Ocidente, herdeiros de Atenas e Jerusalém, a ponte exemplar entre o secular e o sagrado, o temporal e o eterno, entre o visível e o invisível: a cidade natural que foi e será.
A verdadeira lição dos Bizantinos, tão crucial para nós hoje em dia, é o seu entendimento da conexão entre a humanidade e a natureza. Nós podemos aprender de Constantinopla que o mundo a nossa volta é composto de coisas vivas e não apenas de matéria morta para tomarmos e explorarmos para fazermos produtos que então expomos em uma elusiva busca por sentido e felicidade.
Andrew Sharp é Acadêmico Pesquisador do Instituto para Estudos Avançados da Cultura na Universidade da Virgínia, onde trabalha como Gerente do Projeto Cidades Vicejantes e como Professor Assistente Afiliado de Estudos Religiosos na Universidade da Comunidade da Virgínia. Suas publicações são nas áreas de Cristianismo Ortodoxo, Islã e relações Muçulmanas-Cristãs. Publicou o livro “Cristãos Ortodoxos e Islã na Era Pós-Moderna” (Brill, 2012)
Original: http://pemptousia.com/2014/11/was-there-ever-a-truly-natural-city-the-byzantines-thought-so/
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