O que é afinal "imagem e semelhança"?
por Fabio Lins
por Fabio Lins
"A expressão 'de acordo com a imagem Dele' claramente refere-se ao aspecto da natureza Dele que consiste de mente e livre-arbítrio, enquanto que "de acordo com Sua semelhança" significa semelhança em virtudes, na medida em que isso é possível."
S. João de Damasco
S. João de Damasco
Na queda, o homem perdeu a semelhança: deixamos de ser veículos de expressão da virtude ,que só pode vir de Deus; e a imagem ficou "danificada": nossa mente fragmentou-se e nosso livre-arbítrio defeituoso, cheio de inúmeros pequenos e grandes vícios que lhe tolhem
a liberdade de escolha. Este "órgão de tomar decisões", estando doente, faz com que tomemos decisões erradas e "erremos o alvo" da nossa vida que é Deus. Este é que é o significado da palavra "pecado" no grego do Novo Testamento "hamartia": errar o alvo.
Erramos o alvo porque nosso livre-arbítrio é viciado, cheio de "compulsões", ou, como diziam os Pais da Igreja, "paixões" que tem o mesmo radical de "passivo" ou "passividade" (tanto que em inglês diz-se "passions"). Paixões, portanto, são o preciso contrário do que o mundo moderna prega. Ao invés de serem 'afirmações e expressões da individualidade' da pessoa, são exatamente impressões, marcas que o ambiente provoca na pessoa, moldando-a, tolhindo seu livre-arbítrio. Quanto mais cheia de paixões for a pessoa, mais dominada pelo ambiente ela está, menos liberdade ela tem e mais passiva ela é em face do que a cerca, seja a natureza, campanhas de marketing ou a sociedade.
É por isso que o caminho de restauração da imagem passa necessariamente pela via ascética, a via da profunda disciplina. Trata-se de, com o auxílio de Deus, disciplinar as escolhas e as
vontades. Por vezes vemos santos tomando radicais ações de mortificação e ficamos vivamente impressionados. Não estarão violentando-se? Quem já viu uma turba enfurecida de grupos rivais de torcedores brigando sabe que existem situações nas quais medidas violentas são inevitáveis para acalmar os ânimos. Realmente, é possível que a polícia exagere na mão da repressão. Igualmente é possível que alguns santos - que apesar de santos não possuíam a perfeição ideal já que apenas Nosso Senhor Jesus Cristo é sem pecados - tenham exageado a mão. Mas assim como a polícia reprime em favor dos inocentes em volta, o santo disciplina-se em favor da salvação. As compulsões em muitos de nós foram tão excitadas ao longo dos anos pelo reforço e repetição dos mau-hábitos, pelo feedback positivo da sociedade aos nossos vícios que é necessário um "choque" para aquietá-los. Descobrir a medida certa é sempre uma operação delicada e por isso mesmo é que a orientação de um pai espiritual é necessária para que o remédio - especialmente se tiver que ser forte - não ultrapasse a necessidade.
A reunião da mente e do coração é uma necessidade absoluta. Vemos o caso mais radical de tal separação nos psicopatas e sociopatas, nos quais seus pensamentos, quase sempre muito inteligentes, não encontram o menor eco em seu coração. Esta é a razão de muitas pessoas,e admitamos, nós mesmos, tomarmos atitudes "cruéis". Nossa decisão, nossa idéia, não está unida ao coração. Igualmente é o motivo de pessoas de "grande coração" tomarem rumos irracionais,
evidentemente danosos e ilógicos. O coração delas, desvinculado da razão, é qual um navio sem leme, um navegador sem mapa ou bússola. Reunindo inteligência e coração estamos desfazendo o "esfacelamento" da imagem divina em nós.
Para fazer esta reunião apropriadamente é necessário curar o "Nous" o "órgão" que nos permite "ver" Deus. Presentemente, este Nous ora é abalado pelas tempestades do coração, aprisionado pelos limites da mente, e ora é arrastado na lama pelas nossas "passividades compulsivas", as paixões. Por isso o treino ascético constante na oração e na quietude é necessário. Uma vez aquietados os algozes que o agridem, o Nous começa a "curar-se sozinho", ou, melhor dizendo,
considerando que Deus está constantemente "reenergizando-o" com Suas próprias energias para que possamos vê-Lo, ele pode seguir seu rumo natural se estiver sem ataques.
A semelhança só é possível se imagem estiver saudável, isto é, as virtudes só podem ser expressas com uma mente (inteligência-coração) unificada e um livre-arbítrio sem entraves, isto é, sem vícios graves, sejam vícios por coisas diretamente destrutivas ou por prazeres e distrações. A Virtude não está em nós mesmos, mas em Deus. Ela pode se expressar através de nós se formos "veículos" adequados para isso, se o "cano" (nossa alma) estiver firme e sem rachaduras para que a água (as energias de Deus) passe. Um "cano com água abundante jorrando" é o homem santo. Ele é "corpo de Deus" porque naquele momento em que a água está nele, a água e ele são uma só coisa, ainda que composta. É por isso que a pessoa santa, quando diz que todo bem que pratica não vem dela mas de Deus, não está sendo falsamente humilde, mas expressando a mais pura verdade. Só Deus é santo, só Deus é perfeito e não há virtude em nós mesmos, mas podemos ser coparticipantes da virtude, da perfeição e da santidade divinas, conforme o próprio São Pedro nos ensina em sua 2a. epístola.
A salvação consiste precisamente na reconstrução da imagem e mais uma vez receber a semelhança; em restaurar nossa "sanidade espiritual" para a partir daí Deus poder se manifestar em nós, fazendo, assim, que sejamos Seu próprio Corpo. Nossa participação nela é nossa luta ascética diária, nossa "reforma espiritual", tornando este hoje miserável templo em habitação digna do Espírito de Deus.
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O texto que S. João de Damasco segura em seu ícone é:
"Antigamente, Deus, que é sem forma ou corpo, não podia ser retratado. Mas agora, quando Deus foi visto na carne conversando com os homens, faço uma figura do Deus que vejo. Não adoro a matéria. Adoro o Criador da matéria que se tornou matéria por amor de mim."
Burocrata de um reino árabe, ele foi um grande defensor dos ícones em uma época em que o próprio imperador do Império Romano era contra fazer imagens de Deus e santos.
a liberdade de escolha. Este "órgão de tomar decisões", estando doente, faz com que tomemos decisões erradas e "erremos o alvo" da nossa vida que é Deus. Este é que é o significado da palavra "pecado" no grego do Novo Testamento "hamartia": errar o alvo.
Erramos o alvo porque nosso livre-arbítrio é viciado, cheio de "compulsões", ou, como diziam os Pais da Igreja, "paixões" que tem o mesmo radical de "passivo" ou "passividade" (tanto que em inglês diz-se "passions"). Paixões, portanto, são o preciso contrário do que o mundo moderna prega. Ao invés de serem 'afirmações e expressões da individualidade' da pessoa, são exatamente impressões, marcas que o ambiente provoca na pessoa, moldando-a, tolhindo seu livre-arbítrio. Quanto mais cheia de paixões for a pessoa, mais dominada pelo ambiente ela está, menos liberdade ela tem e mais passiva ela é em face do que a cerca, seja a natureza, campanhas de marketing ou a sociedade.
É por isso que o caminho de restauração da imagem passa necessariamente pela via ascética, a via da profunda disciplina. Trata-se de, com o auxílio de Deus, disciplinar as escolhas e as
vontades. Por vezes vemos santos tomando radicais ações de mortificação e ficamos vivamente impressionados. Não estarão violentando-se? Quem já viu uma turba enfurecida de grupos rivais de torcedores brigando sabe que existem situações nas quais medidas violentas são inevitáveis para acalmar os ânimos. Realmente, é possível que a polícia exagere na mão da repressão. Igualmente é possível que alguns santos - que apesar de santos não possuíam a perfeição ideal já que apenas Nosso Senhor Jesus Cristo é sem pecados - tenham exageado a mão. Mas assim como a polícia reprime em favor dos inocentes em volta, o santo disciplina-se em favor da salvação. As compulsões em muitos de nós foram tão excitadas ao longo dos anos pelo reforço e repetição dos mau-hábitos, pelo feedback positivo da sociedade aos nossos vícios que é necessário um "choque" para aquietá-los. Descobrir a medida certa é sempre uma operação delicada e por isso mesmo é que a orientação de um pai espiritual é necessária para que o remédio - especialmente se tiver que ser forte - não ultrapasse a necessidade.
A reunião da mente e do coração é uma necessidade absoluta. Vemos o caso mais radical de tal separação nos psicopatas e sociopatas, nos quais seus pensamentos, quase sempre muito inteligentes, não encontram o menor eco em seu coração. Esta é a razão de muitas pessoas,e admitamos, nós mesmos, tomarmos atitudes "cruéis". Nossa decisão, nossa idéia, não está unida ao coração. Igualmente é o motivo de pessoas de "grande coração" tomarem rumos irracionais,
evidentemente danosos e ilógicos. O coração delas, desvinculado da razão, é qual um navio sem leme, um navegador sem mapa ou bússola. Reunindo inteligência e coração estamos desfazendo o "esfacelamento" da imagem divina em nós.
Para fazer esta reunião apropriadamente é necessário curar o "Nous" o "órgão" que nos permite "ver" Deus. Presentemente, este Nous ora é abalado pelas tempestades do coração, aprisionado pelos limites da mente, e ora é arrastado na lama pelas nossas "passividades compulsivas", as paixões. Por isso o treino ascético constante na oração e na quietude é necessário. Uma vez aquietados os algozes que o agridem, o Nous começa a "curar-se sozinho", ou, melhor dizendo,
considerando que Deus está constantemente "reenergizando-o" com Suas próprias energias para que possamos vê-Lo, ele pode seguir seu rumo natural se estiver sem ataques.
A semelhança só é possível se imagem estiver saudável, isto é, as virtudes só podem ser expressas com uma mente (inteligência-coração) unificada e um livre-arbítrio sem entraves, isto é, sem vícios graves, sejam vícios por coisas diretamente destrutivas ou por prazeres e distrações. A Virtude não está em nós mesmos, mas em Deus. Ela pode se expressar através de nós se formos "veículos" adequados para isso, se o "cano" (nossa alma) estiver firme e sem rachaduras para que a água (as energias de Deus) passe. Um "cano com água abundante jorrando" é o homem santo. Ele é "corpo de Deus" porque naquele momento em que a água está nele, a água e ele são uma só coisa, ainda que composta. É por isso que a pessoa santa, quando diz que todo bem que pratica não vem dela mas de Deus, não está sendo falsamente humilde, mas expressando a mais pura verdade. Só Deus é santo, só Deus é perfeito e não há virtude em nós mesmos, mas podemos ser coparticipantes da virtude, da perfeição e da santidade divinas, conforme o próprio São Pedro nos ensina em sua 2a. epístola.
A salvação consiste precisamente na reconstrução da imagem e mais uma vez receber a semelhança; em restaurar nossa "sanidade espiritual" para a partir daí Deus poder se manifestar em nós, fazendo, assim, que sejamos Seu próprio Corpo. Nossa participação nela é nossa luta ascética diária, nossa "reforma espiritual", tornando este hoje miserável templo em habitação digna do Espírito de Deus.
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O texto que S. João de Damasco segura em seu ícone é:
"Antigamente, Deus, que é sem forma ou corpo, não podia ser retratado. Mas agora, quando Deus foi visto na carne conversando com os homens, faço uma figura do Deus que vejo. Não adoro a matéria. Adoro o Criador da matéria que se tornou matéria por amor de mim."
Burocrata de um reino árabe, ele foi um grande defensor dos ícones em uma época em que o próprio imperador do Império Romano era contra fazer imagens de Deus e santos.
Um comentário:
Grande Fabio: espetacular seu artigo. Muito bom mesmo. Parabéns. Abraço em Cristo, Marcus Boeira.
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