segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O Velho Makários de Kapsala, o Hesicasta Bêbado


por Athanasios Rakovalis

Nem todos os monges são iguais, nem são todos os atletas, médicos ou qualquer outra atividade. Alguns progridem e se tornam referências, enquanto outros são medíocres, alguns alcançam a excelência, enquanto outros fracassam em seu propósito. Entretanto, todos têm seu lugar na vida, e o critério de Deus para eles pode ser diferente do nosso... muito diferente.

Aos olhos de Deus, o pobre Lázaro, que viveu como mendigo, foi bem sucedido, e não o tolo homem rico, com sua fortuna e "sucesso" mundano. Aos olhos de Deus, o publicano pecador foi bem sucedido, ele que estava arrasado por seus pecados e que não ousava levantar os olhos aos céus, mas simplesmente implorava humildemente a Deus: "Deus, tem piedade de mim, um pecador". Aos olhos de Deus, o fariseu era o fracassado, embora religioso e preservando os mandamentos de Deus, pois sua alma estava inchada de orgulho e ele se considerava superior ao Publicano. Deus abominava o Fariseu.  Devemos ter cuidado. Não julguemos o que vemos. Pois o que acontece nas profundezas do coração humano é invisível. Portanto, "ergamo-nos, ergamo-nos com temor". 


Eu soube da existência do ancião Makários ao ouvi-lo. Uma noite eu o ouvi berrando.

"Quem está berrando?", perguntei ao hesicasta que estava me hospedando e me ensinando iconografia.

"Ah, esse é o velho Makários. Ele provavelmente está bêbado de novo e está cantando", ele me disse, enquanto continuava a cavar no jardim. Foi um pouco constrangedor. Eu me perguntei: Então existem monges que ficam bêbados? Eu não esperava por essa.

"Vá lá amanhã para ver se ele precisa de alguma coisa", ele me disse.

"Sim, ancião", eu respondi, pois ficaria contente em encontrar um... eremita tão peculiar.

"Leve alguma comida e pão para ele também".

No dia seguinte, cedo de manhã, me informei do caminho, enchi minha bolsa e parti. Acabei vagando e tendo que me esforçar, pois a trilha estava quase fechada por tantos galhos. Então eu cheguei na sua cela. Era uma cela bonita, como uma pintura, escondida entre as árvores e flores selvagens. Precisava de manutenção, mas ainda estava de pé. Do lado de fora da porta, entre duas pedras, estava uma panela bem preta e vazia.

"Ele cozinha aqui fora?" me perguntei. Eu chamei-o uma, duaz vezes, mas o velho Malários não respondia.

"Talvez ele estivesse com medo? Talvez ele pensasse que eu era algum tipo de ladrão?"...

Me posicionei em um ponto onde ele pudesse me ver. Em tal isolamento, sempre há malandros dispostos a bater em um velho para fazê-lo dizer onde esconde o dinheiro. Como é grande a loucura e a maldade humanas!

De repente a porta se abriu e um homem velho apareceu que mancava de um pé, envolto em uma pequena batina de estilo descente.

Eu pensei: Seria esse um sacrifício pequeno, morar num lugar assim? Um homem de oitenta anos, indefeso, na floresta, isolado? Nessa cela tão pequenina? Se pensasse em mim, que sacrifícios eu realizara por Cristo?

Não desdenhei o velho Malarios, de forma alguma. Simpatizei com ele e o admirei.

Lentamente ele confiou em mim e abriu-me a porta. "O que o senhor gostaria que eu fizesse pelo senhor, ancião? Há algum trabalho que o senhor gostaria que eu fizesse?" Perguntei uma vez e de novo. Ele recusou educadamente, porque não queria me incomodar.

Sem jeito pelas minhas perguntas, ele me disse:

"Você quer fazer um pouco de vinho?

"Eu não sei como, Ancião."

"Eu sei. Eu te digo como".

"Onde vamos encontrar uvas?"

"Eu te digo onde."

"Tudo bem".

Antigamente, quando o povo morava nessa área, existiam vinhas, que embora tenham ficado muitos anos sem cuidados, continuaram a produzir uvas. O velho Makarios me disse para encontrá-las.

Enchi a mochila três vezes e as coloquei em um barril retangular de madeira. Então, com um galho que acabara de cortar bati nelas com força, deixando-as na popla. Por fim, fizemos o vinho.

O velho Makários ficou muito feliz e eu também. Parecia que o vinho era sua consolação. Ele não queria ir para um mosteiro onde eles o forçariam a viver como num asilo, embora isso tenha sido sugerido a ele muitas vezes.

Ele não queria deixar o local onde havia passado a maior parte de sua vida, o "local de meu arrependimento", como ele o chamava. Seu vício era evidente e o humilhava. Um monge que se embebedava! Um hesicasta, um heremita, que bebia e ainda por cima ficava bêbado! Impensável!

Mas suas virtudes eram ocultas e só poderiam ser vistas por aqueles que o contemplassem com ternura.

Como o Padre Makários passava os seus dias quando não estava bêbado? Temos conhecimento dos seus feitos ascéticos? Talvez ele derramasse lágrimas de arrependimento como o Publicano?

Certamente ele não queria abandonar sua plataforma espiritual, sua arena de hesicasmo. Não é necessária coragem para permanecer sozinho, na reclusão da floresta? Não é necessária paciência nas dificuldades, privação de bens, no isolamento pela neve?

Não tinha esse homem auto-negação ao voluntariamente distanciar-se da assistência médica ou consolação humana que teria no asilo do mosteiro?

São essas coisas pequenas? Ele não permaneceu toda a sua vida aos pés de Cristo? Não passara ele toda sua vida na Igreja?

Não estou dizendo que ele era excelente em tudo, mas ele morreu como um atleta lutando pelo primeiro lugar. E daí que ele se embebedava? E daí que ele caía? Quem nunca cai? Quem conhece sua vida oculta? Quem sabe como Deus irá julgá-lo no fim das contas?

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Império ou República Bizantina?

Constantinopla - Idade Média


Análise do livro: The Byzantine Republic: People and Power in New Rome, Anthony Kaldellis

por BRIAN PATRICK MITCHELL

Os livros-textos dizem que o Império Bizantino era uma autocracia teocrática unindo a igreja e o estado sob um imperador todo-poderoso que os bizantinos acreditavam ser o vice-rei e vigário de Deus. Tudo besteira, diz Anthony Kaldellis, professor de antiguidade clássica na Universidade Estadual de Ohio. O Império Bizantino era uma continuação do Império Romano e mesmo da República Romana. Sua ideologia política era fundamentalmente secular e ancorada na antiga crença republicana romana de que o governo existe para servir ao bem comum. Seu povo não mais tinha um papel na eleição dos líderes e legisladores, mas frequentemente tinham um papel extra-legal em elevar e destruir imperadores, cuja legitimidade dependia da popularidade e não de uma alegação de direito divino ou correção constitucional. Os imperadores governavam pragmaticamente e não fanaticamente, frequentemente decepcionando a Igreja para a agradar o povo. 

Isso é um ar fresco para os cristãos ortodoxos, que têm tido que aturar a acusação da teocracia bizantina por mais tempo do que os cristãos ocidentais tem aguentado as acusações de crusadas e inquisições. Mas "The Byzantine Republic" de Kaldellis também provê uma crítica útil do pensamento político ocidental moderno, assim como um portentoso, ainda que inadvertido, insight sobre o pensamento democrático de centro-esquerda e para onde ele vai nos levar. 

Seu livro é francamente um ataque revisionista no campo dos estudos bizantinos, o qual tem perpetuado antigos preconceitos ocidentais que contradizem registros históricos. Kaldellis mira principalmente nos acadêmicos da década de 30 e seus imitadores, mas as raízes do preconceito vão até muito antes, até a propaganda anti-ortodoxa da Idade Média. Os ortodoxos bizantinos recusam-se a reconhecer a supremacia do Papa de Roma sobre todas as coisas sagradas e seculares, e permitiam ao seu imperador muito mais autoridade sobre a Igreja do que os partidários do papado toleravam. Mais tarde, durante o Iluminismo, enquanto o Ocidente se transformava para excluir a religião da política, os bizantinos foram tomados como o principal exemplo de "cesaropapismo" por conta da equivocada crença de que o imperador bizantino governava tanto como rei e papa, sem separação da igreja e do estado. 

Na medida em que o pensamento ocidental evoluía, mais acusações foram lançadas contra o modelo bizantino. O império não possuía uma constituição por escrito, enumerando direitos, separações de poderes, processos democráticos, nem nenhum limite explícito à autoridade do imperador, que parecia governar por direito divino como um monarca absoluto. À essa altura, o império já não existia, então os ocidentais sem nenhum conhecimento de grego ou acesso a documentos relevantes não tinham como conferir a realidade histórica em face das alegações depreciativas de Edward Gibbon e outros, para os quais os bizantinos serviam como um conveniente ponto de partida para versão Whig da história: um pesadelo primevo de despotismo supersticioso do qual o mundo ocidental despertou e se libertou. 

Alguns acadêmicos do século 20, mais gentis, sugeriram modestas correções na narrativa convencional, negando acusações de cesaropapismo e celebrando a arte e a cultura bizantinas, mas nenhum foi tão longe quanto Kaldellis em asseverar a base secular da política bizantina ou em demonstrar a cegueira dos historiadores ocidentais que têm interpretado a política de acordo exclusivamente com as categorias de pensamento do Iluminismo. 

Ao ler, erroneamente, a história romana, os primeiros teóricos ocidentais modernos dividiram o governo em duas categorias básicas, monarquias e repúblicas, definindo a última como uma pólis auto-governada sem um monarca e categorizando as monarquias ora como absolutas, ora como constitucionais. Conforme explica Kaldellis, os antigos gregos e romanos viam as coisas de modo diferente. Suas duas categorias básicas eram reinos e comunidades. Um reino, na experiência deles, era a propriedade de um rei, governada por sua força para sua própria satisfação. Uma comunidade - res publica em latim, politeia em grego, era uma pólis independente, que podia ser governada de várias formas, para o bem de todos. Comunidades, portanto, podiam ser monarquias, aristocracias ou democracias. O próprio Cícero confirma isso, mesmo enquanto lamentava a diminuição do poder senatorial. 

A história padrão de que a república romana terminara com a ascensão de César Augusto a imperador estaria, portanto, simplesmente errada, diz Kaldellis. A república sobreviveu, em uma nova fase, no Principado no lugar do antigo Consulado. Os historiadores chamam a terceira fase da república de Dominato, período durante o qual imperadores militares, governando desde onde fosse necessário para fins militares, pela primeira vez na história romana foram chamados de Domine, ou "Senhor". A quarta, de longe a mais longa e última fase foi Bizâncio, durando do século 5 ao 15, durante a qual os imperadores governaram como civis desde a cidade oficialmente nomeada Nova Roma, mas comumente chamada de Constantinopla ("Cidade do Constantino") e fundada originalmente como Byzantion (Byzantium em latim). 

Durante todo esse milênio, o povo do império chamava a si mesmo de romanos. O termo "bizantino" é uma invenção ocidental moderna. E durante todo o tempo esses romanos identificavam seu império como uma res publica ou politeia, vangloriando-se que diferente de outros impérios, o deles era comprometido com o bem comum. Do início ao fim, os imperadores romanos "bizantinos" eram obrigados a justificar suas ações não com apelos ao direito divino ou lei divina, mas ao bem comum, e o árbitro máximo do bem comum era a politeia, a qual incluía todo mundo - a aristocracia, a burocracia, os exércitos, o clero e as várias classes de pessoas: mercadores, comerciantes, fazendeiros, etc. 

Qualquer um desses podia desafiar o direito de governo do imperador em termos de seu fracasso em servir ao bem comum. Assim, os imperadores bizantinos viviam com medo do povo e faziam todo o possível para mantê-lo feliz, mostrando-se como servidores públicos trabalhando incansavelmente pelo benefício do público. 

Por outro lado, o povo não tinha muito medo do imperador. Comumente eram irreverentes e desleais, abusando verbalmente do imperador em público, e até em sua presença, e desconsiderando leis de que não gostavam. "A história bizantina está cheia de casos de homens e mulheres que se recusavam a obedecer ordens do imperador, quase sempre por motivos religiosos", escreve Kaldellis. Com uma única exceção, revoltas populares tinham sucesso em forçar os imperadores a realizar concessões ou, resistindo, serem forçados à deposição. A única exceção nos mil anos do império foi a revolta de Nika de 532, quando Justiniano, o Grande, por insistência da Imperatriz Teodora, enviou soldados para eliminar a turba assassina reunida no Hipódromo para aclamar outro imperador. Os únicos casos anteriores de tal brutalidade ocorreram ainda no Dominato dos séculos 3 e 4. 

Um elemento mais difícil de ser analisado por ocidentais modernos é a relação entre a autoridade o imperador e as leis do império. Romanos de todas as idades orgulhavam-se de seu respeito pelas leis, o que estava fortemente relacionado com sua crença no bem comum, e uma das características da romanidade que eles acreditavam colocarem-nos acima das outras nações. Esperava-se também que seus imperadores também respeitassem as leis, e mesmo assim não havia lei que não pudessem mudar. Aos olhos ocidentais, isso fazia do imperador não só um autocrata cuja palavra era lei, mas um autocrata sem limites - um monarca absoluto. 

Essa perspectiva comum no ocidente baseia-se menos em Bizâncio do que no "Novo Absolutismo" do início do ocidente moderno, o qual desenvolveu-se a partir dos primeiros esforços dos príncipes ocidentais de teorizar suas alegações de "soberania" em face de reivindicações papais sobre a mesma. Com a Reforma Protestante, essas reinvindicações peculiarmente ocidentais de soberania tornaram-se mais urgentes e expansivas, gerando justificativas tanto católicas quanto protestantes para o "Direito Divino dos Reis", de acordo com o qual o rei, como soberano, não responde a ninguém a não ser a Deus. Para o católico francês Jacques-Benigne Bossuet, o rei personificava o estado: "Tout l´État est en la personne du prince", ele escreveu, ou como diria o Rei Sol, "L'État c´est moi." 

Contra esse Novo Absolutismo surgiram contra-argumentos sujeitando o rei a outros soberanos: a common law (direito comum) anglo-saxã, direitos naturais, constituições codificadas ou não codificadas, a vontade do povo. Contendas religiosas e políticas conduziram os ocidentais a pólos opostos do idealismo político, contrapondo ao idealismo monárquico do Direito Divino ao idealismo "republicano" anti-monárquico concebido sob várias formas. Os argumentos em favor deste último nos são mais conhecidos hoje em dia. Os Pais Fundadores dos EUA utilizaram todos desse último tipo, com quase nenhuma consideração por consistência e sem resolver de fato o problema teórico e prático da soberania limitada. Pois se o povo é soberano, o que nos protegerá do absolutismo democrático já que o povo decide que leis fazer, que direitos respeitar, e mesmo como ler a constituição? Quem dirá ao povo que ele está errado, e quem vai detê-lo quando ele não escuta? 

Os bizantinos nunca se importaram em fazer tais perguntas porque nunca precisaram. Para eles a preocupação central não era a fonte do governo - soberania - mas, diz Kaldellis, o propósito do governo. Portanto eles não absolutizavam o imperador. Eles sabiam que ele era um mero mortal e um pecador que respondia tanto a Deus e à politeia. Eles não acreditavam em Direito Divino. 

Eles acreditavam que Deus ordenava os governantes como "agente(s) da justiça para punir quem pratica o mal" (Romanos 13:4), mas também sabiam que Deus costumava desordenar governantes por seus próprios motivos. Como muitos povos eram tentados a acreditar em sangue real, mas isso não impedia que destronassem imperadores incompetentes "nascidos no púrpura". E se qualquer imperador bizantino tivesse dito, "o estado sou eu", todos os que tivessem ouvido o teriam por louco. 

Sem um ideal monárquico, os bizantinos nunca precisaram de um ideal anti-monárquico. Eles nunca absolutizaram os direitos naturais, ou a lei romana, ou mesmo o povo romano. Também eles, eram meros mortais e pecadores, e o que importava mais era o bem da politeia, não a vontade do povo. Nem a vontade deles era a única vontade que importava: tinha-se que ponderar a vontade de Deus, e sabia-se que Deus normalmente dava ao povo não o que ele queria, mas o que ele precisava. Ele lidava com o povo não de acordo com princípios fixos de justiça, mas em termos do que seria melhor para a salvação da alma de cada um. O termo bizantino para isso era oikonomía e ainda éum importante aspecto da teologia pastoral cristão ortodoxa. 

A abordagem bizantina da política era igualmente "econômica". A lei suprema era a segurança da comunidade. Todo o resto era discricionário. A garantia divina do imperador como um "agente da justiça" contra o mal era entendida pragmaticamente como um dever de os governantes restringirem o mal, e não de erradicá-lo. Concessões eram feitas por "humanidade, bom senso e utilidade pública", nas palavras de Justiniano, com o entendimento de que alguns males não são facilmente criminalizáveis. Os imperadores cristãos, portanto, eram lentos em banir muitos males condenados pela igreja mas que eram populares entre as massas como a escravidão, a prostituição, a pornografia e os jogos de gladiadores. 

Kaldellis admite que o ensino cristão fundamentava o comprometimento da república bizantina com o bem comum, e ele considera a Bizâncio cristã mais republicana que as duas fases anteriores da república - o Principado e o Dominato. Mas em sua ânsia de argumentar contra a leitura convencionalmente teocrática da historia de Bizâncio, ele erra pelo lado oposto, na direção de uma leitura essencialmente secular. "A politeia romana era cristã apenas acidentalmente", ele escreve, e o resultado era um república monárquica fundamentalmente secular "mascarando-se, para si mesma tanto quanto para os outros, como uma teocracia imperial". Os bizantinos seriam confusos, dados a "modalidades conflitantes de pensamento" e de oscilar "contextualmente" entre pensamento secular e religioso. Seu pragmatismo e seu republicanismo seriam ambos produtos de um pensamento secular, em conflito com o suposto idealismo e imperialismo cristãos. 


É nesse ponto que a dependência do próprio Kaldellis em face de concepções ocidentais do cristianismo interfere com sua análise. Ele escreve, por exemplo,que "secular" é uma "categorial fundamental do pensamento cristão". Pode-se argumentar que isso seja verdade no cristianismo ocidental, o qual tende a fazer distinções bem definidas entre as categorias de sagrado e profano, natural e sobrenatural, clero e povo, sacerdócio "religioso" e "secular", autoridade espiritual e autoridade temporal, a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Mas isso não é tão obviamente verdadeiro sobre o cristianismo ortodoxo. A Ortodoxia não tem um equivalente teológico exato de "secular" e lhes parece que os católicos enfatizam demais tais categorias. 

O uso que Kaldellis faz de “secular” é ainda mais distante do pensamento ortodoxo. Ele parece limitar o pensamento cristão a ideias a respeito da religião cristã, como se todas as demais ideias não fossem cristãs e fossem, portanto, seculares. Então, quando uma fonte bizantina atribui uma vitória à intervenção divina, ela estaria pensando “religiosamente”, e quanto a mesma fonte atribui a vitória à uma estratégia superior, ela estaria pensando “secularmente”. Kaldellis portanto não entende como os cristãos bizantinos conseguiam reconciliar a deposição de um imperador pelo povo com a ordenação daquele imperador por Deus. Ele só consegue classificar a coisa de inconsistente – e mais fundamentalmente secular que cristã. 

Surpreendentemente, Kaldellis identifica Jean-Jacques Rousseau como o teórico ocidental mais próximo da tradição bizantina, citando passagens do Contrato Social que até soam vagamente bizantinas. Rousseau define a república como “qualquer estado governado por leis, qualquer que seja a forma de administração”. Ele atribui a soberania ao povo e faz do governo seus ministros. E enfatiza a importância do consenso moral e vê a necessidade de uma religião civil. Quando ele escreve que as leis mais importantes não são as que estão escritas, mas as que estão “nos corações dos cidadãos”, segundo Kaldellis, Rousseau “revela-se um pensador clássico ao invés de moderno”. 

Essa é uma leitura superficial de Rousseau. Bizâncio era uma realidade histórica concreta – um povo em particular com um passado em particular, e tradições religiosas, legais, políticas e culturais – enquanto a república de Rousseau é só a mais uma ideia teórica ocidental, baseada em uma compreensão da natureza humana e da história que é muito anti-romana, anti-cristã e anti-bizantina. Em sua república teórica, todas as questões de valor definidoras do bem comum são definidas pela “vontade geral”, a qual não tem ligação com religião, tradição, instituição, constituição, contrato ou mesmo com a realidade. O povo é livre para construir uma nova civilização da forma que acharem melhor: ele só precisam de um legislador iluminado para mostrar-lhes como. Rousseau via a si mesmo nesse papel e chegou a oferecer sua consultoria em legislação revolucionária para a Polônia e Córsega. 

Mas o que Kaldellis vê em Rousseau, a ideia de um povo expressando sua vontade do jeito bizantino, afirmando sua soberania sobre o governo extralegalmente, é o motivo pelo qual Rousseau ainda se equipara a Marx como o principal profeta do esquerdismo, e porque podemos esperar que acadêmicos de esquerda abracem a recolocação que Kaldellis faz dos bizantinos como democratas seculares. Kaldellis mostra que a democracia pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes. Para conservadores americanos, ela significa eleições regulamentadas e aderência estrita à lei escrita e precedentes legais, mas para muitos esquerdistas americanos significa protestos públicos, desobediência civil e intimidação por turbas. A esquerda entende que se apenas a vontade do povo decide o bem comum, então o punho erguido é um indicador do bem comum melhor que o voto, pois quando o sistema não satisfaz, algumas pessoas vão se revoltar e algumas não. 

Brian Patrick Mitchell é autor de Eight Ways to Run the Country e protodiácono na Igreja Ortodoxa.

http://www.theamericanconservative.com/articles/byzantine-empire-or-republic/

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O que "União" significa para Ortodoxos e Católicos?


(O encontro do Patriarca com o Papa) foi vastamente coberto pela mídia, com o Papa e o Patriarca fazendo pronunciamentos conjuntos, orações conjuntas e documentos assinados conjuntamente. Até mesmo partilharam um abraço.


É fácil para o fiel ortodoxo simples e piedoso se escandalizar com tais ações, mas devemos lembrar que o Papa e o Patriarca ainda possuem objetivos mutuamente excludentes que os impedem de consumar uma união, isto é, para cada um dos dois, os termos da união são diferentes.


Em 05 de novembro de 2014, o Papa Francisco explicou seus objetivos claramente para a Audiência Geral na Praça de São Pedro. Ele disse:

"Quando Jesus escolheu e chamou os Apóstolos, Ele não pensava neles como separados uns dos outros, cada um por si, mas juntos, porque deviam permanecer unidos nEle, como uma única família. Além disso, os bispos também constituem um Colegiado único, reunido com o Papa, que é o guardião e garantidor desta profunda comunhão que era tão querida ao coração de Jesus e para seus Apóstolos também...
Nenhuma Igreja é saudável se os fiéis, os diáconos e os padres não estão unidos ao bispo. Essa Igreja, que não está unida ao bispo, é uma Igreja doente. Jesus queria essa união de todos os fiéis com o bispo, incluindo diáconos e padres. E isso eles fazem conscientes de que é precisamente no bispo que o elo é feito visível com cada Igreja, com os Apóstolos e todas as outras comunidades, unidas a seus bispos e ao Papa na Igreja una do Senhor Jesus, que é a nossa Hierárquica Santa Madre Igreja."




Portanto, de acordo com essas palavras do Papa Francisco, a Igreja Ortodoxa seria qualificada como "uma igreja doente", e a restauração da saúde de "uma igreja doente" (católica, ortodoxa ou protestante) só ocorre pela união com "o Papa na Igreja una do Senhor Jesus", para ele, a Igreja Católica Romana.


O Patriarca Bartolomeu também deixou seus objetivos claros pouca mais de um ano antes quando encontrou o Patriarca da Bulgária no Fanár em 20 de setembro de 2013. Em um pronunciamento sobre o diálogo ecumênico com os heterodoxos, o Patriarca Bartolomeu disse:

"Quanto às discussões e diálogos entre todas as igrejas ortodoxas e os heterodoxos, elas tem como propósito final a realização da vontade e mandamento do Senhor: "Que todos sejam um" (Jo. 17:21). Agora contribuem para a cooperação social e o testemunho da verdade, e ambos objetivam uma compreensão mútua e, na hora certa, a aceitação da única fé ortodoxa por parte dos heterodoxos. Não buscamos, como foi escrito na Bulgária e em outros lugares, a criação de um 'conglomerado' de crenças comuns aceitáveis. Isto é, não estamos buscando através do assim chamado movimento ecumênico, a aceitação de uma "confissão cristã sincrética", mas um aprofundamento da fé cristã ortodoxa e da cooperação social com aqueles que invocam o nome de Cristo.
Naturalmente, não temos medo, como ortodoxos e que possuímos a plenitude da verdade, de que seríamos afetados pelos pontos de vista de nossos irmãos heterodoxos em questões doutrinais. Estamos apenas seguindo um tradição eclesiástica longamente mantida, resumida no conselho de S. João Clímaco: "no caso daqueles que disputam maliciosamente conosco, sejam descrentes ou hereges, devemos desistir depois de tê-los alertados duas vezes. Mas no caso daqueles que desejam aprender a verdade através de nós, jamais nos cansemos de boas ações. Entretanto, devemos usar ambas as oportunidades para o estabelecimento de nosso próprio coração" (Escada, Degrau 26:125). Através dessa estratégia não estamos traindo a Ortodoxia, como nos criticaram, nem apoiamos conceitos ecumenistas, mas proclamamos aos heterodoxos toda a verdade da Ortodoxia".


Portanto, de acordo com o Patriarca Bartolomeu, a Igreja Católica Romana, é uma igreja heterodoxa que deve "no tempo certo" aceitar "a única fé ortodoxa" para que haja união entre as Igrejas Ortodoxa e Católica.


Vemos que cada um tem em mente sentidos mutuamente excludentes para a palavra "união", mesmo quando a pronunciam juntos, sem que haja objetivos comuns. Ambos desejam a união, cada um a seu modo, como todos os cristãos deveriam desejar a união, mas a consumação de tal fato através da intercomunhão, partilhando o cálice da Divina Eucaristia tanto em uma igreja como em outra, só poderia ocorrer se ou o Papa ou o Patriarca fizessem sérias alterações doutrinárias, e não há sinais de que essa possibilidade sequer esteja no horizonte.


Adaptado e resumido de: http://www.johnsanidopoulos.com/2014/11/the-mutually-exclusive-goals-of-pope.html

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Encíclica Sobre Ecumenismo do Bispo Nicholas de Mesogaia e Lavreotiki



01 de junho de  2014

(...)

O Ocidente perdeu sua fé. O Oriente até hoje preserva a fé Ortodoxa, mas eu pergunto o quanto nós ortodoxos vivemos essa fé? E se nossas vidas não correspondem a nossa fé, talvez sejamos piores do que eles que a perderam por ignorância.

Ao invés de gritar em tons ofensivos contra o Ocidente, talvez o objeto da nossa reprovação devesse ser nós mesmos? Verdadeiramente, qual o benefício de defender uma fé que não é confirmada em nossa vida?
De que adianta criticar duramente uma pessoa que nasceu e foi educada daquela forma, quando não há crítica igual por nossa inconsistência?

No fim das contas, o que talvez seja necessário nas relações inter-cristãs, não são as incessantes recriminações das "ilusões do Ocidente", nem também as exuberantes manifestações de amizades imaturas, mas antes uma confissão sem rodeios da fé ortodoxa e de nosso humide convite aos ocidentais. Talvez eles acabem por viver a fé mais consistentemente do que nós que a preservamos e entretanto não a realizamos em nossas vidas, nem o ethos e o ensino que eles ignoram enquanto possivelmente buscam pela verdade.

O que precisamos é unidade na humildade da parte de nós ortodoxos e a confissão de nosso amor pelo mundo e pelos heterodoxos.

O que devemos oferecer não é a recriminação dos outros pelos seus erros, mas acima de tudo nosso arrependimento pelo déficit do testemunho em nossa vida. Se eles não vêem a diferença em nossas vidas, como virão a reconhecer nossas doutrinas?

Se o Ocidente não confessar humildemente suas aberrações doutrinais e sua necessidade de retornar à "plenitude da verdade", e se por outro lado o oriente ortodoxo não viver a benção de sua riqueza teológica sob sua responsabilidade, e não discernir a necessidade de arrependimento pelo seu testemunho inconsistente, então os diálogos, orações prematuras e encontros inter-eclesiásticos terão apenas um caráter secular de comunicação enquanto essencialmente apenas aprofundam a confusão e distanciam todos nós da una verdade salvífica.

Irmãos, "Vigiai! Sede firmes na fé! Sede homens! Sede fortes! Tudo o que fazeis, fazei-o na caridade." 
(1 Cor 16:13,14)

Com orações e muito amor no Senhor,
Bispo Nicholas de Mesogaia e Lavreotiki

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Como é o Pedido de Casamento de um (futuro) Padre?

Glorificai comigo ao Senhor, juntos exaltemos o Seu nome.
Salmos 34:3


por Arcipreste Vladimir Berzonsky
Original: http://www.pravmir.com/the-girl-that-i-marry/

Na Rússia pré-revolucionária, quando um seminarista pedia em casamento a moça que esperava que fosse a companhia de sua vida, sua consorte ou "Matushka", ele enviava para ela uma nota com as seguintes palavras da Bíblia: "Glorificai comigo ao Senhor, juntos exaltemos o Seu nome". (Salmos 34:3) Vê o que elas sugerem? Você e eu com Deus para nos guiar através da vida com um propósito comum. Sim, casamento é sobre amor, mas também inclui a Fonte do amor, o maior modelo de afeto entre um homem e uma mulher, porque Ele dá sentido à própria vida. Que eles aumentem sua compreensão das ações poderosas de Deus na criação de modos que nem Adão e Eva poderiam ter alcançado. Glorificar o Senhor é aumentar nossas próprias almas e alargar suas perspectivas. Exaltar o Senhor é cantar-Lhe louvores ao Seu nome não apenas com nossas vozes, mas também com nossas ações. Nosso estilo de vida aumenta Sua glória muito além da canção de nossas orações.

Certamente a pessoa pode fazer tais coisas sozinha; entretanto, a oração "Pai Nosso" é fortificada quando dois ou mais pronunciam juntos a frase "santificado seja o Teu nome". Ela inclui toda a Igreja, não apenas globalmente, mas também todos os que nos precederam no descanso. A vida na paróquia e na comunidade em seu esforço conjunto para aumentar a consciência da presença de Deus em nossas vidas é uma forma gloriosa de "exaltarmos o Seu nome".

Essa bonita frase não é apenas para famílias de padres. Todo homem e mulher casados pode fazer dela seu lema. Quando duas pessoas escolhem casar-se na Igreja Ortodoxa, eles estão se comprometendo a receber o Espírito Santo em suas vidas. Ser coroado com honra e glória é assumir a responsabilidade por um reino que inclui o lar e os filhos. Pressupõe enfrentar os obstáculos que surgem de tempos em tempos para se opor e desafiar o casal real. 

É imperativo que o homem e a mulher cresçam juntos em respeito e apoio mútuos. Eles são como alpinistas amarrados um ao outro. Eles devem andar sempre para frente e para cima. Se um não se mantiver firme na sua ponta, o outro cairá com ele.

Mesmo quando eles compartilham as tarefas, exaltar o Senhor juntos significa que eles amadurecem para além do egoísmo. Tive muitos incidentes onde o casal agradecia o aconselhamento, elogiava o coral e a mim por um bonito casamento, e então deixavam de ir a Igreja, mesmo quando tinham sido membros formalmente ativos. De certa forma, eles prolongam a lua-de-mel para deixar todos os outros de fora. Quando o padrão de autossatisfação se torna a norma, somos separados da vida da Igreja e passamos a existir apenas na sociedade secular. Se o Senhor e a Igreja não têm mais lugar em seus lares e vidas, o que poderão esperar de seus filhos?

O marido deve lembrar que sua esposa é sempre sua melhor amiga. Você não deve nunca tratá-la como um objeto, ou, como nossa degradante cultura aprova, apenas uma bonita acompanhante para ficar expondo em eventos sociais. O motivo pelo qual OJ Simpson decaiu de herói do futebol americano para persona non grata em seu país não foi apena porque ele não foi condenado por assassinato, mas porque ele era incapaz de deixar a Nicole ser ela mesma. Para ele, ela era uma posse, não uma pessoa. E a esposa deve ter em mente: seu marido também é o seu próximo, na imagem que Jesus usou para explicar a definição da parábola do Bom Samaritano.

Nossa cultura é tão determinada em evitar o sacrifício e a dor que não faz praticamente nada para tentar restaurar a harmonia no lar - mas o Terceiro Parceiro do casal - Deus - nunca falha. O marido e a mulher são abençoados por Jesus Cristo, Ele que estava em seu casamento, assim como esteve em Caná da Galiléia, Ele que ouve todas as orações e escuta todo pedido de corações sinceros.



sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Intercomunhão com Roma IV: Pronunciamento do Patriarca Bartolomeu em 29 de Agosto de 2015

Caso restasse alguma dúvida sobre a questão de intercomunhão com Roma, vejam o pronunciamento do Patriarca Bartolomeu logo depois do meu comentário abaixo.

Todos são bem-vindos para assistir a Divina Liturgia, e fazem bem os Ortodoxos que vão conhecer a missa romana.

Mas não importa à Igreja Católica Ortodoxa o que Roma permite ou não permite no que tange à comunhão posto que separada da Igreja perdeu todas as prerrogativas de autoridade e não pertence mais a nossa comunhão. Apostolicidade não é apenas sequência ininterrupta, mas também fidelidade à fé dos apóstolos e é exatamente essa fidelidade que Roma e a Ortodoxia questionam mutuamente uma na outra.

Do lado da Ortodoxia, não é permitido sob circunstância alguma ao ortodoxo comungar em nenhuma outra igreja, nem mesmo romana, por semelhante que seja à nossa, assim como é vedado ao ortodoxo dar a comunhão a qualquer um que não seja ortodoxo, romanos inclusive. É inapropriado que ortodoxo ou romano se coloque na fila de comunhão da outra igreja, obrigando o padre ou bispo a ficar na "saia curta" de ou negar a comunhão na frente de todos ou cometer um pecado de concedê-la a quem não é permitido.

A permissão que o Papa deu para seu rebanho de que seria possível comungar na Igreja Ortodoxa é na melhor das hipóteses, uma medida mal-pensada e "entrona" como se eu dissesse ao meu filho que no caso de ficar muito distante ou sem acesso a esposa dele, ele pode beijar a *sua* esposa. E ainda te acusasse de "radical" e "hostil ao diálogo" por não deixar.

De nossa parte, o nosso dever é testemunhar que quem deseja o maior e mais íntimo dos sacramentos ortodoxos, deve desejar toda a fé ortodoxa e todos os sacramentos, inclusive o batismo e/ou crisma. Se for romano, nossa esperança e desejo ardoroso é que complete sua conversão tornando-se católico ortodoxo antes de mais nada, e partilhando assim da plenitude da fé conforme foi entregue por Cristo aos Apóstolos de uma vez para sempre, sem prejuízo de nossa esperança mais ampla a respeito da Sé Romana de ver a realização da oração sacerdotal de Jesus, onde Ele roga ao Pai que "Todos sejam um" (Jo 17:21) que se realizará com o retorno de todos os cristãos à Igreja Católica Ortodoxa.



Trecho do Pronunciamento de Sua Santidade Patriarca Ecumênico Bartolomeu à Sinaxis dos Hierarcas do Trono
(Sobre como interagir com as heterodoxias nas terras não-ortodoxas)

Somos obrigados a reconhecer que a era de comunidades e nações religiosas puras já passou e as pessoas são chamadas a receber a alteridade como um elemento constitutivo de nossas sociedades se não desejam caminhar na direção do conflito e do tumulto.
A coexistência dos ortodoxos com outros cristãos hoje em dia compõe uma realidade inevitável na área da diáspora e espalha-se rapidamente mesmo dentro de nações e sociedades que era anteriormente exclusivamente ortodoxas. Isso obriga nossa Igreja a adaptar toda sua vida pastoral com o princípio de economia. 
Portanto, por exemplo, o aumento do número de casamentos mistos é agora uma realidade que compele a a Igreja a aceitar orações e cultos comuns com os não-ortodoxos, o que já é feito em todas as igrejas ortodoxas. 
Isso de nenhuma forma é um desvio do elemento fundamental que continua a dividir os ortodoxos dos outros cristão, que se trata da comunhão da Santa Eucaristia e pressupõe concordância completa com a fé de nossa Igreja. Nesse último ponto, não pode haver exercício de economia.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Intercomunhão com Roma III: O que precisaria mudar para poder haver intercomunhão?

Este artigo foi escrito a convite pelo Pe. Thomas Hopko, para uma conferência que ocorreu em Washington, D.C., em 2005, realizada pela Igreja Católica Romana, pelo Instituto Teológico de Woodstock e a Universidade de Georgetown sobre "o que os não-católicos exigiriam da Igreja de Roma e do Papa de Roma para entrar em comunhão sacramental com a Igreja Católica Romana".
Pe. Thomas Hopko

Notem que a conferência inteira é fundada no conhecimento elementar de que é errada a intercomunhão antes da união da fé, que todos estão cientes de que existem diferenças significativas das fés entre suas igrejas e Roma – inclusive entre a Igreja Católica Ortodoxa e a Igreja Católica Romana, e que portanto é necessário delinearmos quais as mudanças necessárias para que a intercomunhão seja possível.

Essa conferência contava ainda com várias igrejas não-romanas: episcopais, luteranos, metodistas, batistas, calvinistas, sociedade dos amigos, e quakers, além claro, dos ortodoxos. O Pe. Thomas Hopko fora convidado por ser teólogo, professor de teologia dogmática e reitor-emérito do Seminário Teológico Ortodoxo de S. Vladimir, tendo sido reitor entre os anos de 1992 e 2002.

Outras autoridades poderiam compilar listas um pouco diferentes de ações práticas requeridas para que ortodoxos e romanos pudessem tomar comunhão na igreja um do outro, entretanto nenhuma negaria que as diferenças correntemente existentes na fé, nas estruturas eclesiásticas e de autoridade episcopal são impendimentos sérios para a intercomunhão. De todo modo, fiquemos com a análise do Pe. Thomas Hopko. 



O que Roma Precisaria Fazer para restaurarmos a Comunhão Sacramental? 
 
Por Pe. Thomas Hopko (1939-2015+)
http://www.ancientfaith.com/podcasts/hopko/what_does_rome_need_to_do_part_2

Primeiro de tudo, acredito que os ortodoxos insistiriam – ou deveriam insistir – que o bispo de Roma confesse a fé ortodoxa preservada pela Igreja Católica através da história e ensine e defenda a verdadeira doutrina cristã. Isso significa que o Papa teria que fazer várias coisas específicas, principalmente, em minha opinião, as seguintes. Isto é o que creio que os ortodoxos pediriam: 

Primeiro, o bispo de Roma teria que confirmar o texto original do Símbolo de Fé Niceno-Constantinopolitano e defender seu uso em todas as igrejas, a começar com a sua própria. Pelo menos, caso por questões pastorais algumas igrejas recebessem a permissão de manter o filioque no seu Credo, o bispo de Roma teria que insistir que se explicasse o filioque de modo a deixar claro que o Espírito Santo “procede do Filho” apenas em relação a dispensação salvífica de Deus no mundo, em economia, por outras palavras, o Espírito Santo que procede eternamente do Pai é dado ao mundo através do Filho, para que se preserve o entendimento próprio das relações entre as Pessoas da Trindade. O Papa teria que garantir que nenhum cristão seria tentado a acreditar que o Espírito Santo procede em essência do Pai e do Filho juntamente, e certamente não “de ambos como de um – ab utroque sicut ab uno” a qual é uma posição tradicional da Igreja Romana a partir de uma época posterior, quando o filioque foi discutido entre o Oriente e o Ocidente. 

Em outras palavras, o Credo sem o filioque teria que ser subscrito. Se por alguma razão, em alguns lugares, a Igreja Romana mantivesse o filioque no Credo, teria que deixar claro aos que quisessem entender que isso não significa uma processão eterna do Espírito Santo desde o Pai e o Filho, e nem mesmo do Pai e do Filho “como que de um”; isso não seria aceitável pela Ortodoxia. 

Também, o bispo de Roma, o Papa, teria que ensinar que o Pai e o Filho e o Espírito Santo são três pessoas ou hipóstases distintas e não simplesmente “relações subsistentes” dentro do Deus uno, o qual é identificado com a una natureza divina. Ele teria que insistir e garantir que o Verdadeiro e Um Deus da fé cristã não é a Santíssima Trindade entendida como um sujeito quase unipessoal que se revela como Pai, Filho e Espírito, o que, para o cristianismo tradicional, é inaceitável e de fato seria entendido como uma versão do modalismo, ou seja, que há um Deus, que é Pai, que é Filho e que é Espírito Santo – não! 

Há um que é o Pai, um que é o Filho, Um que é o Espírito Santo. Sua unidade é perfeita, Sua divindade é perfeita, mas a divindade do Filho e do Espírito deriva eternamente, antes da fundação do mundo, antes do tempo e do espaço, da Pessoa do Pai. O Pai comunica toda sua divindade ao Seu Filho desde toda a Eternidade e Deus, para os Cristãos, é tri-Pessoal, tri-hipostáticamente divindade, tri-hipostaticamente divino. 

O Papa também teria que insistir que os seres humanos podem ter comunhão real com Deus através das divinas ações e energias incriadas em relação com as criaturas, as quais vêm do Pai, através do Filho e no Espírito Santo. Esse pequeno parágrafo significa que o palamismo teria que ser aceito, pois foi conciliarmente recebido por todas as igrejas Ortodoxas, de que realmente existe uma distinção entre a essência e as energias de Deus: a Divinidade incogniscível e supra-essencial que é oculta, e as atividades de Deus nas quais nós criaturas realmente participamos através da revelação do Pai, através do Filho no Espírito Santo. 

O bispo de Roma, o Papa, teria que dizer oficialmente que a imaculada conceição da Mãe de Deus, Maria, desde seus pais, e a glorificação total de Maria em Cristo ressuscitado à direita do Pai, foi explicada de modo impróprio nas bulas papais que acompanharam originalmente os dogmas ex cathedra da Igreja Romana sobre esses dois artigos da fé. O papa precisaria explicar que a concepção de Maria por seus pais foi pura e santa, sem necessidade de que Deus aplique extraordinariamente “os méritos de Cristo” ao ato sexual de Joaquim e Ana para conceber sua filha com o fim de libertá-la “da mancha do pecado original”. O Papa também deveria deixar claro que Maria realmente morreu e não foi assunta corporalmente aos céus antes de aniquilar a morte com sua própria morte, por fé em seu Filho, Jesus Cristo. 

Eis o que quero dizer: a Igreja Ortodoxa afirma que Maria foi concebida imaculadamente de seus pais, Joaquim e Ana, mas isso não precisou de nenhum ato excepcional ou especial da parte de Deus para mantê-la livre da mancha do pecado original desde a concepção. Devemos notar que algumas igrejas Ortodoxas, que são bem anti-romanas, ainda têm uma versão deste ensinamento, e elas diriam que a mancha do pecado original foi retirada na Anunciação, e não na concepção de Joaquim e Ana. Em todo caso, deveria haver uma explicação da Imaculada Conceição, e da Dormição, da Assunção de Maria, corporalmente, à presença de Deus, que se conformasse com a prática litúrgica e com a doutrina Ortodoxa. 

Além disso, o Papa também deveria dizer oficialmente, afirmando de modo claro, que, embora haja uma purificação e limpeza do pecado no processo da morte humana, não há um estado ou condição de purgatório depois da morte onde o pecador paga a punição temporária que alegadamente ele deveria a Deus por seus pecados. O Papa cessaria também a prática de indulgências através das quais, através de certas atividades piedosas, os cristãos supostamente reduziriam os “dias” de sofrimento purgatorial para eles mesmos e para outros. 

Aqui, claro, isso significa que a alegoria dos pedágios da tradição Ortodoxa, a qual creio ser um ensino ortodoxo tradicional, não diz que os pecadores tem que ser punidos pelos pegados que cometeram na terra antes de morrer, nos 22 pedágios que foram formulados no segundo século em Constantinopla, mas que eles devem libertar-se das paixões e purificados delas com o fim de entrar no reino de Deus, e portanto a oração pelos mortos, rogando a misericórdia de Deus, assim como a graça de que as pessoas aceitem Cristo, e portanto libertas de seus pecados. Esse é que seria, creio, o entendimento que deveria ser compartilhado por Roma sobre essa questão. 

O Papa deveria deixar claro que a crucificação de Cristo não foi um pagamento do débito de punição que os homens supostamente devem a Deus por seus pecados. O bispo de Roma iria ensinar, ao invés, com seus co-bispos do patriarcado ocidental, que o auto-sacrifício de Cristo ao Seu Pai foi o pagamento salvífico, redentor e reparador de uma dívida de amor perfeito, justiça, obediência, gratidão e glória perfeitas que os seres humanos devem a Deus, que Deus deve receber dos seres humanos para nossa salvação do pecado e libertação da morte e que agora, realmente obtivemos por causa da morte redentora, em total amor a Deus e a humanidade, de Jesus, o Cristo crucificado, que é o novo e último Adão. 

Em outras palavras, teria que haver uma explicação de porque a morte de Cristo na Cruz é reparadora, e a explicação não poderia ser que os humanos têm que ser punidos e Cristo recebe essa punição. Ao invés, é que os humanos precisam ser bons e santos e guardar a lei de Deus, o que apenas Cristo consegue fazer, e portanto pela fé nEle podemos ter nossos próprios pecados perdoados e nosso caminho para a restauração e o paraíso garantidos. 

O Papa teria que garantir a todos os cristãos que o bispo de Roma nunca fará ou ensinará nada de sua própria autoridade, por si mesmo, ou de si mesmo e sem o consenso da Igreja. “Ex sese et non ex consenso ecclesiae,” em latim. O bispo de Roma teria que prometer servir em sua presidência unicamente como porta-voz de todos os bispos em sucessão apostólica, que governam comunidades de crentes que os escolheram para servir como bispos, e cuja validade e legitimidade como bispos depende unicamente na sua fidelidade ao Evangelho e a fé de uma vez por toda entregue aos santos, em comunhão com seus predescessores no ofício arquisacerdotal e arquipastoral e um com o outro. 

Claro que isso significa que a doutrina da infalibilidade do papa, conforme formulada no Vaticano I e defendida no Vaticano II, teria que ser rejeitada ou radicalmente modificada para que os Ortodoxos ficassem comunhão com Roma. 

Creio também que em questões doutrinárias e morais não decididas – questões abertas, por assim dizer – o Papa de Roma teria que usar sua autoridade presidencial para garantir que todos, clero e leigos, seria encorajado a livremente apresentar seus argumentos concernentes ao ensino e prática cristã, conforme testemunhado nos documentos formais de testemunhos da fé e vida cristã, isto é, as escrituras canônicas (a Bíblia), as liturgias tradicionais, os concílios e cânones cristãos universalmente recebidos, e o testemunho e escritos dos santos canonizados – não por tudo que os santos tenham dito e feito, mas especificamente pelas razões que esses santos foram glorificados na Igreja e seu ensino foi aceito pela Igreja universal. 

Então, o dever do Papa é garantir que a devida atividade sinodal e conciliar ocorra entre os bispos e o povo com o fim de a Igreja alcançar uma decisão sobre questões doutrinais e morais. 

Finalmente, o Papa de Roma utilizaria sua autoridade presidencial para garantir um espírito de liberdade, abertura, respeito e amor nas e entre todas as igrejas e todos os Cristãos e, de fato, todos os seres humanos, de modo que o Espírito Santo, o único “Vigário de Cristo na terra”, possa nos relembrar o que Cristo disse e guia o povo até toda a verdade (Jo. 14:25, 16:13). O Papa seria dessa forma verdadeiramente o grande construtor de pontes, o pontifex maximus. 

O ponto é que o Papa garantiria, asseguraria, promoveria, defenderia e pastorearia um espírito de liberdade, abertura, respeito e amor entre todas as igrejas, cristãos e todo o povo, de modo que o Espírito Santo, que é o único “vigário de Cristo na terra”, possa trazer a lembrança do que Cristo disse, com atos, então, através de todo o corpo junto. 

Continuo agora falando da Liturgia. Para que o Papa de Roma possa exercitar sua “presidência em amor” entre as igrejas e a liderança cristã no mundo, sua igreja, a Igreja de Roma, teria que dar o exemplo de uma correta adoração cristã. Também isso significaria para os ortodoxos algumas coisas bem específicas. Primeiro de tudo, creio, o bispo de Roma teria que insistir que, exceto por razões pastorais extraordinárias, o batismo deve ser feito por imersão na água em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. 

E ele também afirmaria que os recém-batizados fossem imediatamente crismados com o selo do dom do Espírito Santo e trazidos à comunhão com Cristo por participação na Santa Eucaristia. Isso inclui os infantes que entram na vida sacramental da Igreja por virtude da fé dos adultos que cuidam deles. A prática de uma ação posterior com o bispo impondo suas mãos para confirmar a fé do batizado – que hoje é chamada de Crisma - poderia ser permitida em igrejas que desejassem continuar com essa prática piedosa por razões de costumes. 

Sobre a participação na Santa Eucaristia, o papa também deveria insistir que os fiéis recebam a Santa Comunhão dos Dons – isto é, o pão e o vinho – que são oferecidos na Liturgia Eucarística que estão celebrando. Os fiéis não receberiam a Comunhão em Liturgias Eucarísticas a partir de Dons que são guardados exclusivamente para os que estão incapacitados de participar na Liturgia por boas razões (normalmente doença ou enfermidade, ou porque estão envolvidos em serviços ao próximo e portanto perdem a Liturgia da Igreja). 

O ponto aqui é que não tem como você ter a Missa e comungar o povo com o sacramento de reserva que é mantido no cibório do altar. O pão tem que ser oferecido e consagrado e erguido no altar da Liturgia para a comunhão do povo presente, que participa junto da Liturgia. 

O ponto seguinte é que o Papa também teria que garantir que os fiéis também participem do vinho consagrado, o sangue de Cristo, durante a Santa Comunhão. Como isso será feito na prática pode variar em diferentes igrejas, mas deve ser feito sem exceção. Quanto ao pão, biscoitos não fermentados poderiam ser usados por razões pastorais em igrejas com essa prática pastoral, mas o papa afirmar o pão fermentado, o artos, como normativo para a Eucaristia Cristã. 

O Papa deveria insistir na celebração da Santa Eucaristia com os salmos, leituras das Escrituras e sermões exegéticos de acordo com as práticas eclesiásticas locais como forma normativa de culto conjunto para cristãos no domingo e nas festas litúrgicas de Igreja. Ele, com seus colegas bispos, proibiria celebrações eucarísticas privadas para celebrar intenções particulares e para fins pietísticos particulares, políticos ou ideológicos. Ele apoiaria a celebração também das orações das horas: vésperas, completas, matinas e horas – nas igrejas. Ele restauraria a prática de ter o celebrante sacerdotal voltado para o altar – em outras palavras, voltado para o Oriente – junto com os fiéis durante as orações e ofertas Eucarísticas na Divina Liturgia. Ele também consideraria resgatar a antiga prática ascética e penitencial de proibir a celebração da Santa Eucaristia em igrejas cristãs nos dias da semana da Grande Quaresma, exceto na festa da Anunciação. 

Os ortodoxos defenderiam que mudanças estruturais e administrativas devem ocorrer se o Papa de Roma quiser ser aceito e reconhecido como o bispo que exerce sua presidência em amor entre as igrejas, sendo o bispo da Igreja de Roma, igreja que preside em amor – não o homem, mas a Igreja tem a presidência em amor – e que o bispo dessa igreja, o Papa de Roma, serviria como o líder mundial do Cristianismo. 

Um “colégio de cardeais” constituído de homens de todo o mundo, e designado pelo papa e tendo ministérios nominais em Roma, simplesmente não existiria mais. Em outras palavras, não seriam cardeais apontados pelo papa que elegeriam o próximo papa, mas seriam os líderes das igrejas ortodoxas afirmando e confirmando o que a própria Igreja Romana fez ao eleger seu próprio bispo. Assim a eleição seria pela Igreja de Roma, a confirmação seria pelos primazes das outras igrejas regionais da Terra. 

O Papa não selecionaria nem designaria os bispos em quaisquer igrejas, como ele faz hoje. Ele iria, ao invés, confirmá-los em seus ministérios, e poderia fazê-lo até de alguma maneira formal, já que cada bispo é chamado a confirmar seus irmãos com quem ele exerce o episcopado uno in solidum. Essa é uma referência a S. Cipriano de Cartago, que disse, “Episcopatus unus est, o espicopado é um e todos os bispos o exercem in solidum, juntos em unidade”. 

O Papa certamente teria o direito e o dever de questionar a escolha do candidato para o episcopado, especialmente de uma presidência regional (isso significa os primazes das igrejas locais) que ele considere inadequados ou indignos da cátedra. Ele pode até ter a oportunidade de avaliar os candidatos e oferecer sua opinião antes que a eleição ocorra, especialmente a de um bispo presidente de uma igreja territorial. Mas o papa faria isso como qualquer outro bispo ou primaz de uma igreja regional. Ele não teria o direito ou o poder de interferir nas questões internas de qualquer igreja ou diocese, além das suas próprias. 

O Papa, o bispo de Roma, iria designer comissões e departamentos compostos por homens e mulheres competentes vindos de todas as igrejas em comunhão com Roma para assisti-lo em suas atividades como líder mundial e principal porta-voz da Cristandade. Ele também organizaria encontros regulares dos primazes das igrejas do mundo para apoiá-lo na sua missão global como o líder universal da Igreja Cristã na terra. O Papa teria uma comissão para tratar da doutrina da igreja, a doutrina cristã, e do pensamento teológico nas várias igrejas do mundo, mas não haveria nenhum departamento com a autoridade de tomar ação disciplinadora em questões doutrinais, as quais, quando necessárias, seriam tratadas pelo bispo local. Os bispos da Igreja, e não uma equipe de teólogos em Roma, designados pelo papa e falando em seu nome – é que constituiriam o magistério formal da Igreja. Obviamente, isso significa que estamos falando do fim do Santo Ofício, e mesmo da Cúria, de que haja corpos conciliares em Roma, vivendo lá, representando todas as igrejas do mundo e trabalhando juntos nessas áreas. 

Cada bispo supervisionaria os membros de seu rebanho. Ele teria que prestar especial atenção aos membros intelectuais, carismáticos e ativistas da sua igreja, e teria que exercitar orientação, direcionamento e disciplina pastorais adequadas. O bispo local proibiria a Santa Comunhão para membros que neguem as doutrinas e/ou práticas cristãs que ele e seus irmãos-bispos, com o papa Romano como seu líder, são chamados e consagrados para proclamar e defender. 

Caso um bispo seja acusado de ensinar doutrinas falsas (heresias) ou de se envolver em comportamento imoral, ou de permitir que aqueles sob seus cuidados o façam, ele deve ser julgado pelo sínodo de bispos ao qual ele pertence, isto é, o sínodo regional que irá discipliná-lo ou depô-lo. Em outras palavras, ele não seria julgado diretamente pelo Vaticano ou Roma; a questão será tratada pelo sínodo a que pertence, mesmo que ele seja o presidente do mesmo. Se for culpado do mal-feito, seu próprio sínodo irá discipliná-lo ou depô-lo. Se ele quiser apelar seu caso, ele pode buscar o bispo que exerce a presidência entre as igrejas da sua região, e como último recurso, ele pode apelar ao bispo de Roma, como o mais alto presidente da Igreja, o tribunal de última instância por assim dizer. 

O Papa não teria poder de tomar decisões jurídicas ou jurisdicionais autoritativas, mas exerceria o ministério de intercessão e reconciliação. O mesmo direito de apelação às presidências regionais e mesmo ao bispo de Roma estaria, naturalmente, disponível a todo membro da igreja, clero ou leigo, que fosse acusado de ensino errado ou algum mal-feito. 

O bispo de Roma também deixaria de ser um chefe de estado oficial. Como líder global do Cristianismo, entretanto, ele teria que viver em um lugar com o mínimo de riscos de interferências governamentais e políticas em seu ministério. E isso é muito importante para os ortodoxos, cujos bispos estão sempre sofrendo algum tipo de controle ou tentativa de controle por parte dos países em que vivem. Então diríamos que seria bom se ele não fosse um chefe de estado e vivesse em um lugar com riscos mínimos de interferência governamental e política no seu ministério. O local onde o Papa viveria, e onde as comissões intereclesiásticas e departamentos também estariam localizados, seriam governados por um leigo, designado pela Igreja Romana. Os chefes de estado se relacionariam com o papa apenas enquanto bispo e líder espiritual, e não como chefe de estado. Em outras palavras, ainda existiria um lugar como a Cidade do Vaticano, mas seu líder político e secular seria um leigo, escolhido pela Igreja. Não seria o Papa, que teria uma função especificamente eclesiástica, espiritual, pastoral e doutrinal. 

Como líder dos cristãos do mundo, o papa viajaria bastante. Ele tiraria o máximo proveito dos meios de transporte e comunicação contemporâneos. Ele dominaria a mídia eletrônica para servir seu ministério em proclamar o Evangelho de Cristo, propagando a fé cristã, promovendo o comportamento ético, protegendo os direitos humanos e buscando a justiça e a paz para todos os povos. Ele seria o servo da unidade entre todos os seres humanos, e o primeiro de todos os seus irmãos cristão, não como um episcopus espiscoporum singular (essa é uma expressão de S. Cipriano), não como um bispo de outros bispos, pois não existe um bispo de bispos, como foi decretado no Concílio de Cartago no terceiro século, mas como um igual a todos os bispos. Ele não seria um bispo de bispos, mas seria o primeiro bispo, aquele que o Papa S. Gregório Magno chamou de servus servorum Dei, o servo dos servos de Deus, entre todos os bispos cristãos do mundo. 

Agora, grande boa-vontade, energia e tempo seriam necessários para remodelar o papado para que o Papa de Roma se tornasse o líder mundial do Cristianismo como o bispo cuja igreja preside em amor entre todas as igrejas católicas do mundo que preservam e ensinam a fé ortodoxa. Como papas recentes insistiram, um arrependimento radical também seria necessário, começando por Roma, cujo chamado como primeira entre as igrejas cristãs é de dar o exemplo. 

Certamente também as igrejas ortodoxas deveriam sujeitar-se a muitas mudanças humildantes nas suas atitudes, estrutura e comportamento para entrar em comunhão sacramental com a Igreja Romana e reconhecer sua presidência entre as igrejas na pessoa do papa, seu bispo. Mudanças tremendas também deveriam acontecer na Ortodoxia. 

Os ortodoxos certamente teriam que superar suas querelas internas, a despeito e contra privilégios e poderes eclesiásticos, porque os bispos ortodoxos de hoje mal podem concordar onde devem sentar-se em uma mesa se realizassem um concílio. É um escândalo, de verdade. E os ortodoxos teriam que candidamente admitir suas contribuições pecaminosas para as divisões e falta de união cristãs ao longo da história, e se arrepender sinceramente dessas coisas. Também teriam que abandonar todo desejo e exigência de que outras igrejas se arrependam publicamente de seus erros e pecados passados. Eles teria que estar dispostos a permitir que Deus coloque tudo no passado e no esquecimento pelo amor da realização da reconciliação e reunião dos cristãos no tempo presente. 

Aqui devemos mencionar também a prática de termos igrejas organizadas de acordo com etnias e culturas, como gregos, russos, sírios. Isso teria que ser radicalmente alterado, para ser entendido de forma apropriada. 

Em outras palavras, os ortodoxos teriam que sacrificar tudo exceto a própria fé por amor de construir um futuro comum com cristãos que estejam dispostos e capazes de fazê-lo com eles sob a liderança de um Papa Ortodoxo de Roma. O que precisamos é um Papa Ortodoxo de Roma. Como os católicos romanos e os protestantes, os ortodoxos teriam que estar dispostos a morrer com Cristo para si mesmos em seus interesses pessoais, culturais, étnicos, eclesiásticos e políticos por amor de uma plena unidade com todos que desejam ser salvos pelo Senhor crucificado e dentro da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, a qual é, de acordo com as Escrituras, o Corpo de Cristo, a plenitude dele que completa tudo em todos (Ef. 1:23). A Igreja que é “casa de Deus”, a Igreja do Deus Vivo, o pilar e sustentáculo da Verdade (I Tim 3:15) 

Com a firme convicção de que com Deus todas as coisas são possíveis, podemos ousar imaginar, talvez até fantasiar, com uma unidade global dos cristãos na fé que foi de uma vez por todas entregue aos santos sob a presidência de Igreja Ortodoxa de Roma. 

Era isso que tinha para dizer nesse artigo e o apresento para discussão sobre o que nós ortodoxos gostaríamos de ver na Igreja de Roma ou que precisaríamos ver para poder haver comunhão sacramental. 

Que Deus abençoe nosso caminho, o Deus para Quem todas as coisas são possíveis.

Veja o artigo anterior na série aqui: http://vidaortodoxa.blogspot.com/2015/08/intercomunhao-com-roma-ii-relacao.html