De Roma para Constantinopla |
Esta carta foi publicada originalmente no boletim de uma paróquia ortodoxa na Itália. Seu autor é o Arcipreste Gregório Cognetti, Reitor das paróquias italianas do Patriarcado de Moscou. Acho interessante para o público brasileiro porque os dilemas enfrentados pelo Pe. Gregório e seu amigo Bill nas relações entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa são muitos semelhantes aos nossos, como ortodoxos em terras romanas.
Chapel Hill (U.S.), Março de 1982
Caro Bill,
Mesmo que você nunca tenha perguntado diretamente, sinto pelas suas palavras que você ainda não entende porque deixei a Igreja Romana para me tornar Ortodoxo. Parece que você diz "Mas você era de uma paróquia de rito bizantino das menos latinizadas! Por que fez isso?".
Acho que te devo uma explicação, já que, há muito tempo atrás, quando erámos membros da igreja Latina, compartilhávamos os mesmos sentimentos. Esses sentimentos nos levaram a uma paróquia de rito bizantino, e a mim mesmo até a Ortodoxia. Você não poderia ter esquecido as críticas que tínhamos sobre os romanos: a contínua inserção de novas tradições no lugar das antigas, o escolasticismo, a abordagem legalística da vida espiritual, o dogma da infalibilidade papal. Ao mesmo tempo reconhecíamos a legitimidade e correção da Igreja Ortodoxa. Uma paróquia uniata parecia a solução ideal. Eu lembro que na época eu dizia: "se eu penso como ortodoxo, acredito como ortodoxo, então eu sou ortodoxo". Entrar oficialmente na Igreja Ortodoxa me parecia apenas uma formalidade inútil. Eu até mesmo pensava que permanecer em comunhão com a Igreja Romana poderia ter um lado positivo, em vista da possível reunificação das Igrejas.
Bem, Bill, eu estava errado. Eu achava que eu conhecia a Fé Ortodoxa, mas sabia muito pouco e bem superficialmente aliás. Tanto era assim que eu não entendia a contradição intrínseca entre me sentir ortodoxo e não ser reconhecido como tal pela própria Igreja cuja fé eu afirmava compartilhar. Apenas um não-ortodoxo poderia conceber tal absurdidade como ser ortodoxo fora da Ortodoxia. A salvação individual não diz respeito apenas a uma pessoa em particular, como muitos ocidentais crêem, mas deve ser compreendida no quadro mais amplo de toda a comunhão da Igreja.
Cada cristão ortodoxo é como uma folha: como pode receber a seiva vivificante se não estiver ligado à vinha? (João 15:5)
A Ortodoxia é um modo de vida, e não um rito. A beleza do rito deriva da realidade interna da fé ortodoxa, e não de uma busca por formas. A Divina Liturgia não é uma forma mais pitoresca de rezar a Missa: ela se origina e se fortalece de uma realidade teológica que se torna vazia e inconsistente se realizada fora da Ortodoxia.
Quando o espírito da Fé Ortodoxa está presente, até o mais pobre ofício, feito em um barraco, com dois ícones de papéis em cima de cadeiras para servirem de iconostase, e um grupo de fiéis desafinados como coro, até este ofício é incomparavelmente maior que os ofícios da minha antiga paróquia uniata, feitos entre mosaicos bizantinos magníficos do século 12, e um coral bem treinado (quando estavam lá). A observância quase paranóica das formas rituais é uma tentativa inútil de compensar pela falta de um verdadeiro ethos Ortodoxo. Eu estava me iludindo quando achava que poderia ser Ortodoxo na comunhão romana. Era uma ilusão porque tal coisa é impossível.
A contínua interferência de Roma na vida eclesiástica te lembra, em seu devido tempo, quem é que manda. Fingir ignorar isso é auto-ilusão. Eu tentei evitar o problema, fingindo ser surdo e mudo, e repetindo para mim mesmo que eu pertencia a ideal "igreja não-dividida". Minha posição era bem pecaminosa. Primeiro de tudo, porque a Igreja não-dividida ainda existe: é a Igreja que nunca rompeu com Seu passado, que é sempre idêntica a Si mesma: em outras palavras, a Igreja Ortodoxa.
Então, aquele sentimento de ser membro da Igreja Não-Dividida, que eu considerava tão cristão e pacificador, era na verdade um grave pecado de orgulho. Eu estava praticamente me colocando acima de Patriarcas e Papas. Eu acreditava que eu era um dos poucos que realmente tinham entendido a Verdade, acima de polêmicas velhas e estéreis.
Eu achava que eu tinha o direito de comungar tanto na Igreja Romana como na Ortodoxa, e eu me sentia injustiçado quando a Igreja Ortodoxa me negava a comunhão. Eu tenho um grande débito de gratidão com o padre que, naquele tempo, se recusou a me dar a comunhão. Ao invés de desviar do assunto com delicadeza falando de impedimentos canônicos, como se a questão fosse meramente um problema burocrático, ele disse na minha cara: "se é verdade que você se considera ortodoxo, por que é que você continua membro de uma heresia?"
Eu fiquei profundamente chocado com tais palavras, e por um longo tempo eu não voltei naquela igreja. Mas ele estava certo. Eu achava que tinha entendido o que Santos, Pais, Bispos e Padres não tinham entendido por séculos.
De acordo comigo mesmo, o cisma entre o Oriente e o Ocidente era um trágico mal-entendido baseado meramente em problemas políticos e nas ponderações de teólogos. E ao dizer isso eu indiretamente acusava muitas pessoas santas de maquinações, superficialidade e malícia. E eu achava que pensar tudo isso era caridade cristã.
Não, Bill, é impossível ser Católico Romano e Ortodoxo ao mesmo tempo.
O rito não é o mais importante. Afinal, os Latinos tiveram um rito ortodoxo ocidental por muitos séculos. Eu concordo com você que, depois da separação, os romanos e os ortodoxos ainda preservaram muita coisa em comum, mas isso não é suficiente para considerá-los como partes da mesma igreja. Além das bem-conhecidas diferenças doutrinais têm as diferentes abordagens do sobrenatural, a própria vida da Igreja que torna impossível viver duas realidades religiosas diferentes ao mesmo tempo.
Dizemos no Credo: Creio na Igreja *UNA*, Santa, Católica e Apostólica". Até que a unidade de fé ocorra, elas serão duas igrejas diferentes.
A teoria, também afirmada por João Paulo II, de que os romanos e os ortodoxos ainda são uma só igreja (a despeito do cisma e de um modo misterioso) soa bonito, mas não se sustenta. São apenas isso: palavras bonitas. As diferenças de fé, por outro lado, existem e não são mero jogo de palavras.
Sim, eu sei que o diálogo teológico já existe, e que talvez seja até possível (tudo é possível ao Senhor) que a unidade acabe sendo alcançada. Mas tome cuidado! Muitos romanos de bem acreditam que as diferenças podem ser resolvidas através de afirmações astutamente ambíguas que, por serem genéricas, podem soar aceitáveis para ambas as partes. Uma vez que se obtivesse um acordo sobre tais afirmações, cada um poderia interpretá-las de acordo com sua própria compreensão, na prática mantendo suas opiniões. Pior ainda, alguns propõem uma "unidade na diversidade" sem um compromisso formal de fé por nenhum dos lados, mas sob a coordenação universal do Papa de Roma.
Bem, tudo isso é impossível. Os Pais nos ensinam que a concordância com a fé comum deve ser direta e sem ambiguidades.
A Ortodoxia segue o espírito da Lei, ao invés da letra. E como é impossível para a Igreja Ortodoxa introduzir novas doutrinas, cabe aos romanos abandonarem um milênio de inovações, e sem reservas, retornarem à fé da Igreja Católica e Apostólica.
Está é a única plataforma possível de acordo.
A história já mostrou a falácia de uniões baseadas em outros termos. E agora me deixe te fazer uma pergunta trivial: Bill, o Papa é infalível (de moto próprio e não por virtude do consenso da Igreja, como especificado no dogma de 1870) ou não? Ele não pode ser falível e infalível ao mesmo tempo, como aconteceria se duas igrejas fossem ainda parte da mesma Igreja. Um dos dois tem que estar errado.
Talvez você responda: "Mas o Vaticano II permitiu uma grande liberdade de opiniões..." Mas isso é um sofisma. A verdadeira Igreja não pode cair em erro. Se você acredita que a sua Igreja errou, o que Ela está de fato cometendo erros, então você nega que Ela seja a verdadeira Igreja.
Abraço-te com imutável amizade e amor em Cristo,
Gregório
(PS. Bill se converteu à Igreja Católica Ortodoxa pouco depois de receber essa carta, tornando-se leitor em uma igreja da Flórida)