quarta-feira, 7 de maio de 2014

Não Há Moral na Igreja Ortodoxa


por Reverendíssimo Arquimandrita Padre Vassilios Papavassiliou 
Tradução: Leitor Fabio L. Leite

No cristianismo ortodoxo,não há moral. Eu sei que isso choca muitas pessoas, mas o digo por um bom motivo: porque a moral não é realmente uma ideia teológica, mas filosófica. A moral é normalmente compreendida como um senso de certo e errado, e acho que em certa medida todos o possuem, a despeito de cultura, religião ou época em que vive. Eu não acho que alguém já tenha considerado que o egoísmo ou a covardia sejam coisas boas. As pessoas não acham que seja bom ser horrível com quem foi bom com você, e é assim em qualquer religião que você creia, qualquer época em que viva, qualquer cultura de que participe. Existe um senso comum de certo e errado.

Mas há variações. Alguns diriam que é aceitável se vingar, e outros que não devemos fazê-lo de modo algum. Alguns diriam que um homem deve ter apenas uma esposa, outros diriam que ele pode ter várias. Alguns diriam que a gente deve ser bom com quem é bom conosco, outros diriam que devemos ser bons até com que não é bom conosco.

Então, se formos utilizar o termo “moral cristã”, poderíamos dizer que é simplesmente o princípio que governa o senso de certo e errado. Ele nos diz para não nos vingarmos, para sermos bons com os que nos odeiam, para amarmos nossos inimigos, para termos apenas uma esposa , e assim por diante. Mas isso ainda é apenas nada mais do que leis morais, as quais nadas nos dizem sobre porque essas coisas são certas ou erradas, e nem nos diz porque fazer as coisas certas é tão difícil, enquanto fazer as coisas erradas parecem tão fáceis. E isso porque nem chegamos ao cerne da questão, na essência do cristianismo, o qual é teologia, e não um conjunto de leis ou regras de conduta moral. 

Cristo não veio para iniciar uma nova religião, nem simplesmente para nos ensinar princípios pelos quais viver. Ele não era nem um filósofo, nem um professor de moral. Ele veio para nos dar a verdadeira vida, Sua Vida. E enquanto não entendermos que o cristianismo é sobre a verdadeira vida e não sobre moral, é sobre teologia e não filosofia, nunca entenderemos as noções de pecado e santidade, porque o cristianismo está enraizado não em um senso de certo e errado, que é compartilhado com pessoas de outras fés (e mesmo sem fé), mas no conhecimento de Deus e nosso relacionamento com Ele.

O erro de entendimento sobre o cristianismo fica bem claro quando as pessoas dizem coisas como: “Por que eu preciso de religião, ou por que eu preciso ir na igreja para ser uma pessoa boa?” E isso sempre me lembra a passagem na qual o jovem rico vai até Cristo e pergunta, “Bom mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna?” E Cristo responde, “Por que Me chamais de ‘bom’? Só Deus é bom”. Esse é o princípio daquilo que muitos chamariam de moral cristã. 

Nós medimos a bondade não por algum padrão de comportamento social, ou por algum tipo de lei ou princípio ético, mas por Deus, que é o único bom. Não precisamos de religião ou de igreja para sermos o que muitos chamam de “bom”, quer dizer, alguém que mantém as regras sociais, que não mata nem rouba. Mas Cristo não está nos pedindo para simplesmente cumprirmos essas leis. Ele diz, “Sede perfeitos, como vosso Pai no céu é perfeito. Sede santos, pois Eu sou santo”.

A perfeição implica em sermos inteiro, e é notável que Cristo nos pede isso, que sejamos perfeitos, no contexto do seu sermão do monte, quando Ele nos dá os mandamentos: “Ame os seus inimigos. Abençoe os que te amaldiçoam. Faça o bem aos que te odeiam. Se alguém tomar teu manto, dá-lhe também teu casaco. Se alguém te forçar a caminhar um quilômetro, acompanhe-o por dois. Se alguém te bater em uma face, dê-lhe a outra.” E Cristo nos dá o motivo pelo qual devemos fazer isso: “Pois Deus faz o sol brilhar sobre o justo e o injusto, e é gentil tanto com os bons quanto com os maus.” Isso não é moralidade, e continuo a repetir para as pessoas que se formos encontrar algum tipo de ética, de regra moral, no Cristianismo, nas Escrituras, seria nos Dez Mandamentos, que são uma lista de “não faça isso, não faça aquilo”, com alguns mandamentos afirmativos, claro. E muitas pessoas diriam, “Eu sou uma pessoa boa porque eu não mato, não roubo”. Ninguém lista um monte de mandamentos.

Mas quando você lê o sermão de Cristo no monte, quando você lê o Evangelho de Mateus, e escutamos que tudo que importa é o coração humano, que devemos amar quem nos odeia, abençoar e orar por quem nos persegue, dar a outra face, e também quando Jesus nos diz que é possível que estejamos fazendo o que parecem ser boas ações, mas pelos motivos errados, “Não reze ou dê esmolas para ser admirado pelos outros, ou não terás recompensa nos céus”, então isso nos leva muito além da moral. Isso não tem nada a ver com moral. É sobre o coração. É sobre nossa relação com Deus, que ocorre principalmente através de nossa relação com os outros.

Já que a moral cristão está enraizada no nosso relacionamento com Deus, a espiritualidade cristã utiliza uma linguagem diferente da utilizada pela sociedade quando falamos de certo e errado. O secularista tende a falar de valores ao invés de virtudes, de vícios ou crimes ao invés de paixões ou pecados. E a palavra “pecado” parece ser quase um palavrão hoje em dia, embora seja tão comum nas Escrituras e nos escritos da Igreja. Apesar disso muitos a desprezam e abandonam como um anacronismo. Ainda assim, é importante que preservemos nossa linguagem porque não estamos falando simplesmente de crimes, mas do homem interior.

Claro, também é notável que a palavra grega para “pecado”, “amartiya” significa “errar o alvo”. Não é simplesmente uma transgressão, uma quebra de regras, mas um fracasso em alcançar um ideal cristão: “Sede perfeitos como vosso Pai no céu é perfeito.”

Agora, por que achamos tão difícil fazer o que é certo ou termos motivos puros? S. Paulo resume o problema muito bem em sua epístola aos Romanos. Ele diz:
“Sabemos que a Lei é espiritual, mas eu sou da carne, vendido como escravo ao pecado. Não entendo o que faço, pois tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realiza-lo. O que faço não é o bem que desejo. Ao invés, o mal que não desejo, este eu continuo a fazer. E se faço o que não quero fazer, não sou mais eu quem o faz, mas o pecado vivendo em mim que o faz. Então, eu encontro esta lei em funcionamento: quando desejo fazer o bem, o mal está bem ali comigo. Pois em meu ser interior, alegro-me com a lei de Deus, mas vejo outra lei funcionando nos membros do meu corpo, fazendo guerra contra a lei de minha mente e fazendo-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros.”

Então, em outras palavras, temos este conflito entre o que sabemos ser correto e nossa natureza caída e nossos instintos. Por exemplo, se eu escutasse uma pessoa gritando por socorro, eu provavelmente sentiria duas coisas conflitantes: por um lado, um desejo de ajudar a pessoa, porque sabemos que isso é o certo e porque somos fundamentalmente bons e temos um impulso de querer ajudar as outras pessoas quando precisam. Mas também temos um instinto de auto-preservação, de cuidar de nós mesmos ao invés de ajudar outra pessoa. Então o que temos aqui é um conflito entre o que sabemos ser correto e nossos instintos.

Nossa vida espiritual, nossa vida ascética, servem exatamente para aprendermos a superarmos essas paixões e instintos que na prática costumam interferir com o que sabemos ser correto. É muito belo dizer, “amo a humanidade”, mas se firo as pessoas quando estou de mau-humor, e digo algo que realmente magoa, a despeito de quais sejam minhas intenções, então eu realmente não superei minha raiva e vou continuar machucando as pessoas concretas. De forma similar, seu não superar minha ganância, outros irão ficar sem, pois eu tenho mais do que preciso. Porque eu não controlo essas paixões, eu não consigo amar plenamente. Nossa batalha com o pecado é na prática uma aventura em busca do amor divino, de adquirir aquele amor perfeito, “sede perfeitos como vosso Pai no céu é perfeito”.

Existem duas coisas em particular sobre as quais quero falar hoje. Quero falar sobre a relação a pecado e a santidade, uma paixão ou pecado e uma virtude. A paixão sobre a qual quero falar hoje tem sido descrita pelos autores e pensadores cristãos ao longo dos séculos como o pior pecado de todos, e é o pecado do orgulho. E isso pode surpreender a vários. Por que é o pior pecado do mundo. Certamente o assassinato deveria ser pior, até a raiva e o ódio deveriam ser piores. Mas temos que entender que essa paixão é, na verdade, a raiz de muitos outros pecados, mesmo quando não vemos a relação.

O orgulho foi descrito por C.S. Lewis como o “estado mental completamente anti-Deus”, o que é uma afirmação interessante, mas acho que não é inteiramente precisa. De acordo com a tradição cristã, o orgulho foi de fato o pecado do demônio. Então, em um certo sentido, é o mais demoníaco dos pecados. Para um não-cristão, ou para pelo menos um ateu, pode parecer inofensivo, e ele pode achar que chamar isso de um grande pecado é um exagero. Porém, mesmo entre os anti-religiosos, não há pecado que perturbe as pessoas mais do que o orgulho. O tempo todo escuto as pessoas reclamarem que fulano é “tão cheio de si”, que certa pessoa é “tão metida”, que uma terceira “acha que é melhor do que os outros”, e assim por diante. As mesmas pessoas que dizem “Não importa o que você faz e acredita, desde que não machuque ninguém”, não aguentam o pecado do orgulho quando é visto nos outros. Se este orgulho e presunção não estão machucando ninguém, é difícil entender, desde o ponto de vista citado, qual seria o problema. Acho que bem no fundo, todos realmente entendem que existe um diferença entre pecado e virtude. 

Mas claro, odiamos o pecado quando o vemos nos outros, mas normalmente não o vemos em nós mesmos, porque essa é a natureza do orgulho. É amor-próprio. Fico chateado que *outra* pessoa seja o centro das atenções, porque *eu* queria ser o centro das atenções. Fico chateado que alguém seja bem-sucedido, porque eu acho que eu mereço mais que aquela pessoa. O orgulho é essencialmente competitivo. Está sempre te fazendo sentir-se melhor que os outros, ou que merece mais que os outros. Quando reconhecemos este pecado em nós mesmos, ou quando o apontam em nós, deixamos passar, na melhor das hipóteses, tentamos nos justificar, mas assim que o vemos nos outros, não temos nenhuma piedade.

O orgulho, portanto, contradiz o segundo grande mandamento, “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”, porque se realmente amássemos nossos próximos como a nós mesmos, então ninguém ficaria chateado pelo outro ser mais bem sucedido ou mais feliz, ou estar mais bem de vida do que nós, porque nós os amaríamos como a nós mesmos. Além disso, em sua forma mais pura, o orgulho também se opõe ao primeiro grande mandamento, “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua mente”, porque, como disse C.S. Lewis, “ o orgulhoso está sempre as coisas e as pessoas de cima para baixo, e quando você olha para baixo, você não consegue ver nada acima de si.” Em outras palavras, uma pessoa orgulhosa não consegue erguer os olhos para Deus. Na sua forma mais pura, é uma forma de negar a Deus, e, de fato, é o porquê este ser o pecado do demônio: ele queria ser maior do que Deus. Ele é, de fato, o estado de mente anti-Deus.

E a virtude oposta do orgulho é a humildade. E se o orgulho é o estado mental anti-Deus, se o orgulho é o pecado mais demoníaco, o pecado que nos faz mais semelhantes ao demônio, então a humildade é a virtude que mais nos torna semelhantes a Deus. Se o orgulho é o pecado que nos cega para a verdade, que torna impossível vermos as coisas como realmente são, ver nossas faltas, então a humildade é a virtude que vê a verdade, que vê as coisas como elas realmente são. Não deveria nos surpreender que ser humilde é ser como Deus, porque Deus é Ele mesmo humilde, e acho que talvez essa seja uma ideia que as pessoas não consigam entender, mas se você realmente olhar em volta para qualquer coisa que seja realmente bela, e maravilhosa, e nobre, e boa, ela também será, por natureza, humilde. Uma criança, rindo e brincando, é verdadeiramente humilde, belamente humilde. Um cisne no lago é realmente humilde e ainda assim, verdadeiramente belo. E não existe nada de pose sobre esses tipos de beleza.

O próprio Deus é humilde. Deus disse, “Aprendem comigo, pois sou meigo e humilde de coração.” Ele entrou no mundo como um bebê. Ele veio até nós como um homem humilde. Então humildade é realmente a virtude de Deus, porque o que é verdadeiramente bom e puro e belo não tem necessidade de se afirmar, não tem necessidade de provar algo a si mesmo. É o que é por natureza, e não precisa ser comparado a outra coisa para ser o que é. Da mesma forma, Deus não é Deus porque comparado a nós Ele é maior do que nós; Ele é Deus porque é naturalmente Deus.

Então Deus é humilde por natureza, e essa é também a virtude que torna o amor possível. Se o orgulho é o amor de si, a humildade é o que permite negar a nós mesmos pelo nosso próximo. É por isso que essa paixão e essa virtude são tão fundamentais na espiritualidade cristã. O orgulho é o que nos torna semelhantes ao demônio; a humildade é o que nos torna semelhantes a Deus. Nossa batalha com as paixões trata de dominarmos, superarmos o orgulho, e adquirir a humildade. Apenas quando fizermos isso, poderemos progredir em nossa vida espiritual. Apenas quando aprendermos a superarmos nossa raiva, nossa inveja, nossa preguiça, nossa fofoca, nossa calúnia dos outros, e apenas quando realmente aprendermos a amar nosso próximo como a nós mesmos. Apenas então, eu poderei ser perfeito como meu Pai no céu é perfeito. Apenas então serei santo como Deus é santo.

http://www.ancientfaith.com/podcasts/lifeoffaith/sin_and_morality_1#transcript

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Pecado Original ou Ancestral? Uma Breve Comparação




A desobediência primeira do homem, o Fruto
Daquela Árvore Proibida, cujo sabor letal
Trouxe a Morte ao Mundo, e toda nossa miséria
Com a perda do Éden, até um Homem maior
Nos restaurar, e uma vez mais recebermos o trono bendito,
Canta Ó, empírea Musa!
John Milton, Paraíso Perdido, Livro I

Embora Milton tenha escrito de forma mais eloquente do que eu, a música da humanidade é criação, queda e redenção - uma bela sinfonia repleta de ricas polifonias, repentinas modulações e dissonâncias dramáticas. Em algum ponto, uma melodia trágica embrenhou-se na partitura, mas no fim é sobrepujada e a música conclui com fanfarra triunfante. Embora a maioria dos cristãos concorde com esta imagem musical, grupos diferentes escreveriam o prelúdio de forma diferente. De onde exatamente a melodia trágica veio, quem a escreveu na partitura, e como ela afeta o resto da música? A resposta a estas perguntas influencia os atributos das partes individuais, assim como a direção de toda a narrativa musical.

Esta é nossa narrativa de trabalho como alicerce do Cristianismo: Adão e Eva foram criados em comunhão com Deus, perderam esta comunhão, e o resto da humanidade os seguiu. Desta narrativa emergem duas visões divergentes sobre o ser humano, duas antropologias. Embora todos os cristãos usem o termo "pecado original" para se referir ao estado da humanidade depois da Queda (Rom. 5:12-21; Cor. 15:22), muitos Cristãos Ortodoxos preferem o termo "pecado ancestral". Assim, por conveniência, utilizarei o termo pecado original para referir-me exclusivamente às articulações deste conceito feitas por Roma, Calvinistas e Luteranos, que ensinam que a humanidade herdou tanto os efeitos quanto a culpa do pecado de Adão. Em contraste, utilizarei o termo pecado ancestral, para denotar o ensino Cristão Ortodoxo de que a humanidade herdou apenas as consequências do pecado de Adão, e não sua culpa. Uma visão é ontológica, a outra é existencial.

A Igreja Católica Romana foi a primeira a articular a doutrina do pecado original como um estado de culpa herdada - por questão de brevidade, irei dar como inclusas as doutrinas protestantes sobre a Queda na minha discussão do pecado original. Primeiramente inspirados pela teologia reacionária de St. Agostinho de Hipona e solidificada mais tarde por concílios e teólogos, os católicos romanos trilharam um caminho marcadamente diferente dos católicos ortodoxos. Em 1546, o Concílio de Trento emitiu a primeira grande afirmação dogmática sobre o pecado original:

"Se qualquer um afirmar que a prevaricação de Adão feriu somente a ele, e não sua posteridade; e que a santidade e justiça, recebidas de Deus, as quais ele perdeu, apenas ele as teria perdido e nós não; e que ele, tendo sido conspurcado pelo pecado da desobediência transmitiu-nos apenas a morte, e as dores do corpo, mas não também o pecado, o qual é a morte da alma; seja quem tudo isto afirma anátema, pois contradiz o Apóstolo que diz; 'por um homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, e no qual todos pecaram'." (Sessão V)

Quase quatro séculos mais tarde, o catecismo de Baltimore continua a definir o pecado como aquilo que "vem sobre nós desde nossos primeiros pais, e somos trazidos ao mundo com esta culpa em nossa alma" (P. 266). Com a publicação do Catecismo da Igreja Católica, a doutrina do pecado original ainda está presente, embora melhorada pela nova linguagem da perda da "santidade original", "natureza humana ferida pelo primeiro pecado" , "enfraqueceu-se" pela ignorância, sofrimento e morte e "inclinou-se ao pecado(416) - nada a que um teólogo católico ortodoxo objetasse fortemente. A ênfase mudou de uma rígida transferência de culpa para uma gentil perda de santidade e consequentemente  é uma evolução na doutrina. Embora a doutrina católico-romana do pecado original pareça ter sido rearticulada ao longo dos últimos cem anos e muitos fiéis não mais acreditam no ensino de que bebês nascem culpados pelo pecado, é claro na história da teologia do catolicismo romano que o pecado original inclui a imputação da culpa de Adão por sobre toda a humanidade.

Existem consequências notáveis da doutrina do pecado original. Se ela fosse verdade, implicaria que a natureza humana é má - não apenas relativamente, mas positivamente má. Não apenas carregaríamos a culpa de nossos primeiros pais em nossa alma, mas herdamos também uma ontologia degenerada e, portanto, uma inabilidade de fazer algo bom. A culpa de Adão teria transformado a própria natureza humana em algo sujo, posicionado a natureza em oposição à Graça. Se a natureza humana fosse inerentemente depravada, qual o impacto disto na Encarnação de Cristo? Como poderia Deus ter se envolto na carne humana? Teria Cristo herdado a culpa de Adão e sua natureza degenerada? Claramente não, e é assim que teologia ruim gera teologia ruim.

Teologia Heterodoxa #1: A doutrina da imaculada conceição propagada pelo catolicismo romano convenientemente evita o problema de Deus assumir uma natureza humana degenerada alegando que a natureza da Mãe de Deus estava livre da mancha do pecado original transmitida através da semente corrupta de um pai terreno. Isto seria uma consequência lógica da doutrina do pecado original. A Igreja Católica Ortodoxa crê que Maria é Cheia de Graça desde o nascimento, mas não no sentido de que precisava ser "consertada" antes da Anunciação para explicar nossa Cristologia, porque a Igreja nunca pregou a doutrina do pecado original desde seu início.

Teologia Heterodoxa #2: A doutrina da expiação por substituição penal provém das mesmas categorias judiciárias criadas pela doutrina do pecado original na teologia ocidental. O pecado original pertence a um paradigma legal no qual a ira de Deus contra a humanidade, pela culpa do pecado de Adão que está em nós, tem que ser aplacada para que sejamos salvos do fogo eterno. O amor e justiça de Deus, porém, não podem ser separados um do outro porque nossa relação com Deus é baseada na liberdade, não na necessidade. Embora a expiação de Cristo certamente é um conceito ortodoxo, a salvação não ocorre apenas através do ato de perdão de Deus ou de um plano de justiça legalista. A salvação só ocorre através de uma destruição gradual do demônio e de nossas paixões, "trabalhando vossa salvação com tremor e temor" (Fil. 2:12).

Teologia Heterodoxa #3: A doutrina do limbo também contorna o problema do pecado original na teologia católico-romana. Um conceito um tanto sutil, "a perda da justiça original" ainda resultaria na separação de Deus e em merecermos uma punição. Assim, mesmo que tecnicamente não recebam a culpa original de Adão, os bebês não-batizados que morrem seriam relegados a uma eternidade no limbo, o que funcionalmente implica no entendimento tradicional católico-romano de pecado original. Como vemos, são tantos contornos que esta doutrina morre soterrada por tantos casos de exceção. O que diferencia o golfo entre o céu e o inferno para cada pessoa, porém, é acumulação individual, e não herdada, de perda de justificação. De toda forma, quanto mais decidimos especular sobre detalhes intricados da salvação e da perdição, mais doutrinas temos que usar para apoiar nossas teorias. E a graça de Deus não pode ser medida por balanças.

A imagem que o catolicismo ortodoxo tem da humanidade caída é bem menos sombria do que a do catolicismo romano. Embora a Igreja Ortodoxa ensine que a humanidade está ferida pelo pecado, nossa degeneração não é total, consumada ou inerente à natureza humana - nós retemos nossa razão e livre-arbítrio (Imago Dei). As consequências pessoais do desvio moral são a morte espiritual e a morte física, mas as consequências para a humanidade são a morte física, a doença e o trabalho dificultoso. A morte é consequência da quebra de comunhão com Deus, não um julgamento, porque as coisas criadas não conseguem existir sem esta comunhão. Como Adão e Eva estão ligados à Humanidade, e a Humanidade está ligada à Natureza, todo o mundo natural está sujeito a mesma morte e degeneração. Herdamos um Cosmos no qual a doença e a morte reinam. Como disse o Metropolita Kallistos Ware, "mesmo não tendo herdado a culpa dos outros, estamos de alguma forma sempre envolvidos no problema".

A Queda de Adão e Eva também criou a inclinação da humanidade para nos distanciarmos de Deus. Embora Adão e Eva não possuíssem uma santidade madura, eles possuíam inocência, a qual foi perdida depois da Queda. Os teólogos da Igreja falam da corrupção da natureza humana que resulta da perda da Graça de Deus que habitava dentro de nós - e nós humanos pecamos porque estamos voluntariamente subjugados pelo poder da morte e suas consequências, ao invés da Graça protetora de Deus.

De acordo com S. Máximos, o Confessor, o problema é que nossa vontade natural tornou-se uma vontade gnômica, significando que agora podemos balançar entre duas escolhas. A vontade gnômica é capacidade de escolher que tipo de coisa vamos querer, inclusive podendo escolher o pecado contra nossa própria natureza. Depois de colhermos a culpa em nossas almas, a natureza da pessoa não está tão deformada que não possa ser reconhecida. A corrupção da natureza humana pelo pecado é uma doença. Uma mulher com câncer está doente, mas ela mesma não se torna fundamentalmente ruim. Um menino com pernas paralisadas não pode andar, mas não é menos humanos por isso do que alguém com pernas funcionais. Da mesma forma, o pecado não é uma mácula na natureza humana, mas corrupção que acontece dentro do indivíduo.

Desenvolvendo a partir da teologia ortodoxa clássica, o Patriarca Meléssios Pegas (1549-1601), explica desta forma: embora as "energias" da pessoa tenham sido degeneradas pelo pecado, a "essência" não foi. Assim como as distinções entre essência e energia são vitais para o entendimento ortodoxo de Deus, elas também podem ajudar a explicar a inclinação humana para o pecado sem a herança da culpa dos nossos primeiros pais. O pecado não é o que somos, é o que fazemos.

Embora a Igreja Católica Ortodoxa rejeite  a articulação ocidental do pecado original, ainda assim precisamos "nascer de novo". Depois que uma pessoa peca, o golfo entre ela e Deus apenas cresce. Cada vez que ela colhe culpa de sua alma, a pessoa se afasta ainda mais de Deus, ferindo-se no processo. O batismo é o início de uma jornada de uma vida inteira no arrependimento na Igreja, e na qual morremos para a lei da morte para vivermos de acordo com a lei da vida; nossos pecados passados, presentes e futuros são lavados, não somos mais escravos dos efeitos do pecado, e somos reinstalados na Graça de Deus e no potencial para a imortalidade em Cristo. Embora os bebês não sejam eles mesmos culpados do pecado original, eles recebem todos os benefícios do batismo porque haviam herdado tanto a mortalidade quanto a vontade fraca. A cruz não é uma satisfação expiativa, ou um ato de substituição penal, mas ao invés, é Christus Victor - o Cristo Vitorioso que pisou a morte e o pecado com seu sacrifício voluntário e expiativo. Deus assumiu a carne de Suas criaturas e nos permitiu participar na natureza divina (2 Pe. 1:4), restaurando, assim, a  Criação para que ela se torne o que ela foi feita para ser.

A doutrina do pecado original como articulada pela Igreja Católica Romana e depois pelos protestantes não é simplesmente um caso de semântica, mas fruto de uma antropologia equivocada, resultante de erros e mal-entendidos teológicos. Esta doutrina tem vastas implicações para a antropologia - pecado, graça, livre-arbítrio, batismo e teósis. Como compreendemos os efeitos da Queda afeta diretamente nossa soteriologia. A posição ortodoxa sobre o pecado original, chamado por nós de pecado ancestral, é que a humanidade herdou apenas as consequências do pecado de Adão e Eva, e não a culpa deles. O batismo restaura a Graça de Deus nos humanos de forma que tenhamos a capacidade de superar o pecado e a morte, concluindo a longa canção da humanidade.

Alison Sailer Bennet é aluna de Terapia Musical e Filosofia na Temple University na Filadélfia. Ela e seu marido, Jamey, freqüentam a Igreja Ortodoxa Russa São Miguel Arcanjo e operam o site OrthodoxPhilly.com

Www.orthodoxyandheterodoxy.org

O Inferno Testemunha a Glória do Homem



O Inferno Testemunha a Glória do Homem 


Leitor Fabio L. Leite 


Quando alguém critica a ideia de inferno, costuma alegar isto: que penas eternas e sofrimento sem fim são rigorosamente desproporcionais a qualquer erro que qualquer ser humano pudesse cometer. Que Deus age como um raivoso descontrolado batendo em criaturas que mal têm condições de entender o que fizeram e de que forma aquela sova eterna se relaciona com o que fizeram. Este raciocínio pode ser descrito assim: 



a) Justiça consiste na proporção entre a penalidade e  o crime e o criminoso; 

b) O inferno é infinitamente maior que qualquer crime e infinitamente maior que qualquer ser humano; 

c) Portanto o inferno é injusto. 




É a premissa (b) que creio estar errada. Não somos uma poeira ao vento sendo desproporcionalmente punidos. O ser humano é uma criatura cósmica. Mais do que cósmica, é uma criatura que é imagem e semelhança da própria fonte de existência do cosmos. Se você joga um cachorro em uma fornalha por ele ter roído seu chinelo, você é cruel e injusto. Se uma estrela implode ou se duas estrelas se chocam, o inferno de calor, luz e até distorções do espaço que se seguem são tanto naturais quanto proporcionais. Quando um ser humano peca contra si mesmo ou contra outros seres humanos, ele não é como um cachorro, pequeno e ignorante, fazendo xixi na Mona Lisa, e então perseguido por um supervisor cruel. Ele é como essas estrelas. Somos tão enormes quanto a perenidade e nossos crimes contra nós mesmos e o próximo são do tamanho da imortalidade. 



São Nicodemos do Monte Atos diz: 




"Deus criou primeiro o mundo dos anjos, depois o mundo visível. Depois de tudo, ele criou o homem, com uma alma invisível e um corpo visível. Criou-o como o universo, não um pequeno cosmo dentro de um grande cosmo, como disse Demócrito e outros filósofos opinaram, chamando o ente, o homem, de um microcosmo, limitando-o à perfeição do mundo visível. Não! Deus fez o homem, grande cosmo pela multidão de forças que contém, especialmente a razão intuitiva e discursiva, e a vontade, às quais o mundo que é perseguido pelos sentidos não possui." 




São Nektários de Egina escreveu: 



"Grande é o homem espiritual, o homem interior, o espírito ou alma que foi criado à imagem de nosso Deus criador. Ele, que não pode ser contido pelo universo, habita microscopicamente no coração do homem. Isso soa estranho, porém é verdade. O modo é místico, mas sua revelação é manifesta pelos efeitos. Deus é infinito e o universo está na palma de suas mãos. O homem é um grão de poeira e, ainda assim, ergue-se acima do cosmos, acima dos céus, e vê com seus olhos mentais a grandeza da criação. Examina e pesquisa o universo com seu poder racional. Descobre leis que governam o universo. Mede as mais vastas distâncias e dimensões dos corpos celestiais. Conhece sua densidade, solidez e quantidade de substâncias que compõem seus corpos no geral, a natureza e as forças repulsivas e atrativas dos enormes gigantes do firmamento celestial. Iluminado pela criação divina, seu intelecto busca o criador do universo. Estuda o caráter do criador divino e faz asserções sobre seus atributos. "




São Justino Popovich escreveu o seguinte: 



Os homens condenaram Deus à morte; com Sua Ressurreição Ele os condenou à imortalidade. Em troca dos golpes que recebeu, Ele nos abraçou; pelos insultos, nos deu bençãos; pela morte, imortalidade. Nunca o homem mostrou mais ódio a Deus do que quando O crucificaram; e Deus nunca mostrou mais amor à humanidade do que quando ressuscitou.  A Humanidade queria Deus morto, mas Deus, com sua Ressurreição, queria a Humanidade viva, o Deus crucificado ressurrecto no terceiro dia, depois de ter destruído a morte. Não há mais morte. A imortalidade cerca o homem e todo o mundo. 




Em toda sua terrível grandiosidade e infinitude, as penas eternas são um efeito proporcional e natural à auto-destruição de um ser magnificamente maior que todo o universo, um ser que em si pode conter todo o cosmos e a imagem do próprio Criador. O inferno é a implosão voluntária do homem.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Arrependimento


Arrependimento
Peça por arrependimento em tuas orações

Nossa luta espiritual deve ter como tema central, o arrependimento. Apenas no arrependimento encontraremos o verdadeiro significado da vida, pois apenas no arrependimento entramos em comunhão com Deus. Esta vida nos foi dada com um único propósito, que sejamos deificados e unidos com Deus. Esse é o propósito de Deus desde o início, mas nossa alma "quebrada" nos mantém separados de Deus.

É por causa de nossa alma quebrada que não conseguimos ver claramente,pois o Olho da Alma (o Nous) está nublado e obscurecido. Apenas com o arrependimento nosso nous é iluminado, e esta união com Deus se torna possível.
Abade Tryphon

"Peça por arrependimento em tua oração e nada mais, nem por luzes divinas, nem milagres, nem profecias, nem dons espirituais, nada além de arrependimento". Ancião Paisios do Monte Athos





segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A Voz da Igreja deve ser profética



Fonte:  World Council of Churches

Pronunciamento do Metropolita Hilarion de Volokolamsk

Presidente do Departamento para Relações Exteriores do Patriarcado de Moscou
Na 10ª. Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas
Busan, República da Coréa, 1 de novembro de 2013

Vossas Santidades e Beatitudes, Vossas Eminências e Graças, caros irmãos e irmãs, estimados delegados da Assembleia,

O Conselho Mundial de Igrejas tem uma longa e rica história. Criado depois da II Guerra Mundial, o Conselho respondeu às expectativas dos cristãos de várias confissões que lutaram para se encontrar, para se conhecerem e trabalharem juntos. Ao longo de sessenta e cinco anos desde a fundação do Conselho, muitas gerações de cristãos, pertencentes a comunidades religiosas que estiveram separadas umas das outras, descobriram por si mesmos a fé e a vida de seus irmãos e irmãs em Cristo. Muitos preconceitos a respeito das demais tradições cristãs foram superados, e igualmente, aquilo que separa os cristãos no presente foi reconhecido cada vez com maior clareza e profundidade.  A grande realização do Conselho tem sido estes encontros, esta comunicação cristã bem-intencionada e mútua, a qual nunca deu espaço a contemporizações no campo da teologia e da moralidade, e que nos tem permitido continuarmos sinceros conosco mesmo, e darmos o testemunho de nossa fé, enquanto ao mesmo tempo crescemos no amor um pelo outro.

O Conselho Mundial das Igrejas continua hoje um instrumento único de cooperação inter-cristã que não tem análogo no mundo. Entretanto, surge a questão do quão efetivo este instrumento é. Temos que ressaltar, lamentando, que a despeito de todos os esforços em aproximar os cristãos de várias confissões, não só as antigas divisões dentro da Cristandade não desaparecem, como novas têm surgido. Muitas comunidades cristãs continuam a se dividir, enquanto o número das que se unem continua extremamente pequeno.

Um dos problemas que o Conselho tem encontrado é o de finanças. Diz-se que está ligado à crise econômica. Não posso concordar com tal opinião. A experiência de outras organizações internacionais, cujo trabalho é de benefício geral e portanto necessárias, tem demonstrado que o financiamento pode ser encontrado para fins nobres. Isto significa que o problema não está na crise econômica, mas em quão relevante e importante é o trabalho do Conselho para a comunidade internacional de hoje, a qual é significativamente composta, e por vezes, de uma maioria de cristãos.

A criação do Conselho foi determinada pelo esforço para encontrarmos respostas aos desafios do período pós-guerra. Ainda assim, em anos recentes,  o mundo rapidamente mudou, e os cristãos de hoje encaram novos problemas. A futura necessidade de nossa organização depende precisamente de como iremos responder com sucesso a tais desafios.  A situação contemporânea exige de nós mais ações decisivas, maior coesão e mais dinamismo. E também exige uma re-orientação da direção básica de nosso trabalho, uma mudança de prioridades em nossas discussões e feitos. Enquanto continuarmos a discutir nossas diferenças na confortável atmosfera de conferências e diálogos teológicos, o problema ressoará cada vez mais alto: a civilização cristã chegará a sobreviver?

Em meu pronunciamento, eu gostaria de focar em dois desafios fundamentais que o mundo cristão de hoje encara em diferentes graus. O primeiro é o do secularismo militante que reúne forças nos assim chamados países desenvolvidos, primariamente na Europa e na América. O segundo é o do Islamismo radical que representa uma ameaça à própria existência da Cristandade em inúmeras regiões do globo, principalmente no Oriente Médio, mas também em algumas partes da África e da Ásia.

O secularismo militante na Europa tem uma longa história que retroage ao período da Revolução Francesa. Mas é apenas no século 20 que, nos países do assim chamado Bloco Socialista, o ateísmo foi elevado ao nível de uma ideologia de estado. No concernente aos assim chamados países capitalistas, eles preservaram um grau significativo das tradições cristãs que formaram sua identidade moral e cultural.

Hoje parece que estes dois mundos trocaram de papéis. Nos países da antiga União Soviética, em particular na Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Moldávia, um reavivamento religioso sem precedentes está ocorrendo. Na Igreja Ortodoxa russa, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, foram construídas ou restauradas de ruínas mais do que 25 mil igrejas. Isto significa que cerca de mil igrejas por ano foram abertas, três por dia. Mais do que 50 institutos teológicos e 800 mosteiros, cada um cheio de monges e freiras, foram reabertos.

Nos países da Europa ocidental, podemos observar o constante declínio do número de fiéis, uma crise nas vocações, e mosteiros e igrejas sendo fechados. A retórica anti-cristã de muitos políticos e homens de estado é cada vez mais explícita, na medida em que conclamam cada vez mais pela expulsão total da religião da vida pública e pela rejeição das normas morais básicas comuns a todas às tradições religiosas.

A batalha entre as cosmovisões religiosa e secular não acontece hoje em auditórios acadêmicos ou nas páginas de jornais, seu objeto longe de se limitar à questão da crença ou descrença em Deus. Hoje, tal confronto alcançou uma nova dimensão, e toca em aspectos fundamentais da vida cotidiana de toda pessoa humana.

O secularismo militante tem por alvo não apenas os santos locais e símbolos religiosos, mesmo quando exige que estes últimos sejam removidos do domínio público. Uma das principais direções de sua atividade hoje é a objetiva destruição das noções tradicionais de casamento e família. Isto é testemunhado pelo novo fenômeno de igualar as uniões homossexuais com o casamento e permitir que pares do mesmo sexo adotem crianças.  Do ponto de vista do ensino bíblico e dos valores morais cristãos tradicionais, isto dá testemunho de uma profunda crise espiritual. O entendimento religioso do pecado foi conclusivamente erodido em sociedades  que até recentemente se entendiam como cristãs.

Particularmente alarmante é o fato de que estamos lidando desta vez não apenas com uma escolha de ética ou cosmovisão. Sob o pretexto de combater a discriminação, vários países introduziram mudanças em suas leis de família. Nos últimos anos, a coabitação homossexual foi legalizada em vários estados dos EUA, diversos países latino-americanos e na Nova Zelândia. Neste ano, as uniões homossexuais alcançaram status legal de “casamento” na Inglaterra, no País de Gales e na França.

Temos que afirmar claramente que estes países que reconheceram na lei que uniões homossexuais seriam um das formas de casamento estão dando um passo sério na direção da destruição do próprio conceito de casamento e da família. E isto está acontecendo em uma situação na qual em muitos países historicamente cristãos existe uma séria crise da família tradicional: o número de divórcios está crescendo, as taxas de natalidade estão diminuindo catastroficamente, a cultura de uma educação familiar está degradada, para não mencionar a predominância de relações sexuais fora do casamento, o aumento do número de abortos e o aumento de crianças criadas sem os pais, mesmo quando estes pais estão vivos.

Ao invés de encorajar por todos os meios possíveis os valores da família tradicional e apoiar o nascimento de crianças, não apenas materialmente, mas também espiritualmente, a justificação da legitimidade das “famílias de pais homossexuais” que educam crianças tem se tornado o centro da atenção pública. Como resultado, papéis sociais tradicionais foram erodidos e invertidos. A noção de pais, isto é, um pai e uma mãe, do que é masculino e feminino, está radicalmente alterada. A mãe feminina está perdendo seu papel consagrado pelas eras como guardiã do lar, enquanto o pai masculino está perdendo seu papel como educador de seus filhos para ser socialmente responsável. A família, no seu sentido cristão, está sendo destruída para ser trocada por termos impessoais como “Filiação 01” e “Filiação 02”.

Tudo isto só pode ter as mais desastrosas consequências para a criação dos filhos. As crianças que crescem em famílias com “dois pais” ou “duas mães” já terão entendimentos sobre valores éticos e sociais diferentes de seus contemporâneos de famílias tradicionais.
Uma das consequências diretas da reinterpretação radical do conceito de casamento é a séria crise demográfica que irá apenas crescer se tais abordagens ganharem mais adesão. Os políticos que empurram seus países do mundo civilizado para tal abismo demográfico estão, em essência, pronunciando uma sentença de morte para seus povos.

Qual deve ser a resposta das igrejas cristãs? Creio profundamente que esta resposta não pode ser nenhuma outra senão a que se baseia na Revelação Divina conforme nos foi dada pela Bíblia. As Escrituras são o fundamento comum que unem todas as confissões cristãs. Podemos ter diferenças significativas na interpretação as Escrituras, mas todos nós possuímos a mesma Bíblia e seu ensino moral é expresso sem ambiguidades. Claro, diferimos na interpretação de certos textos bíblicos quando estes permitem uma interpretação variante. Entretanto muito na Bíblia é dito sem ambiguidades, especificamente aquilo que procede da voz de Deus e mantém sua relevância por todas as eras subsequentes.  Entre estes pronunciamentos divinos existem vários mandamentos morais, incluindo os que tratam de ética da família.

Ao denunciar todas as formas de discriminação, a Igreja deve, ainda assim, sustentar os ideais bíblicos, opondo-se a ideias da moda e ao mundo secular. Algumas comunidades cristãs, entretanto, há muito embarcaram em uma revisão do ensino moral que busca torna-las mais atualizadas com as tendências modernas.

É comum se dizer que as diferenças entre problemas éticos e teológicos devem-se à divisão dos cristãos entre conservadores e progressistas. É impossível não concordar com isto quando vemos em várias comunidades cristãs uma imprudente liberalização ocorrendo na ética religiosa, normalmente sob influência de processos da sociedade secular. Ao mesmo tempo, o testemunho da Igreja Ortodoxa não deve se reduzir ao conservadorismo. A fé da Igreja antiga que nós Ortodoxos confessamos é impossível de definir segundo os critérios de conservadorismo e progressismo. Nós confessamos a verdade de Cristo, que é imutável, pois ‘Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre’ (Heb. 3:8)

Não estamos falando de conservadorismo, mas de fidelidade à revelação divina que está contida nas Escrituras. E se os assim chamados cristãos progressistas rejeitam o entendimento cristão tradicional das normas morais, isto significa então que temos um problema muito sério em nosso testemunho cristão comum. Poderemos dar este testemunho se estamos tão profundamente divididos em questões de ensino moral, que são tão importantes para a salvação quanto os dogmas?

A este respeito, eu gostaria de falar sobre a vocação profética da Igreja. Eu relembro as palavras do Pe. Alexander Schmemann que disse que um profeta está longe de ser alguém que prediz o futuro. Ao nos relembrar o sentido profunda da profecia, Schmemann escreveu: “A essência da profecia está no dom de proclamar ao povo a vontade de Deus, que está escondida da vista humana, mas é revelada à visão espiritual do profeta’ (Schmemann, The Celebration of Faith, Vol1: I Believe..., p.122).

É comum falarmos da voz profética das igrejas, mas por acaso nossa voz é assim tão diferente da voz e da retórica das mídia secular de massas e de organizações não-governamentais? Não é uma das tarefas mais importantes do Conselho discernir a voz de Deus no cenário histórico moderno e proclamá-la ao mundo? Esta mensagem, claro,  seria difícil de engolir para os poderosos do mundo. Entretanto, ao recusarmos proclamá-la, traímos nossa vocação e, no final das contas, traímos o Cristo.

No contexto de hoje, quando em muitos países e regiões do mundo o reavivamento da religião está ocorrendo e ao mesmo tempo o secularismo agressivo e o ateísmo ideológico levantam suas cabeças, o Conselho Mundial das Igrejas deve encontrar sua própria voz especial que seja compreensível para as sociedades modernas e que proclama as verdades permanentes da fé cristã. Hoje, como sempre, somos chamados a sermos mensageiros da Palavra de Deus, a Palavra que é “veloz, e poderosa, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes (Heb. 4:12); a Palavra que não é atada (2 Tim 2:9). É somente então que podermos trazer novas almas a Cristo, a despeito da resistência dos “governantes das trevas deste mundo” (Ef. 6:12)

Deixem-me falar agora do segundo desafio global para todo o mundo cristão, o desafio do radicalismo baseado em religião, em particular, o radicalismo islâmico. Uso este termo com plena consciência de que islamismo não é islã, e em muitos sentidos é seu contrário. O islã é uma religião de paz, capaz de coexistir com outras tradições religiosas, como foi demonstrado, por exemplo, por séculos de experiência de coexistência pacífica entre cristãos e muçulmanos na Rússia. O islamismo radical, conhecido como Wahabismo ou Salafismo, é um movimento dentro do mundo islâmico que tem como objetivo o estabelecimento de um califado mundial no qual não há lugar para os cristãos.

Aqui não irei entrar nos motivos pelo aparecimento e rápido crescimento deste fenômeno. Direi apenas que nos anos recentes a perseguição de cristão tomou uma escala colossal. De acordo com informações de organizações de direitos humanos, a cada cinco minutos um cristão morre por causa de sua fé em alguma parte do mundo, e todo ano mais do que cem mil cristãos morrem de morte violenta. De acordo com os dados publicados, não menos que 100 milhões de cristãos ao redor do mundo estão agora sujeitos à discriminação e perseguição. A informação sobre opressão vem do Iraque, Síria, Egito, Sudão do Norte, Afeganistão, Paquistão e vários outros países. Nossos irmãos e irmãs estão sendo mortos, expulsos de seus lares e separados de seus familiares e entes queridos; lhes são negados o direito de praticar sua fé e educar suas crianças de acordo com suas crenças religiosas. Os cristãos são a comunidade religiosa mais perseguida no planeta.

Infelizmente, manifestações de discriminação da minoria cristã não podem mais serem tratadas como incidentes separados: em algumas regiões do mundo elas se tornaram uma tendência bem estabelecida. Como resultado dos contínuos conflitos na Síria, o número de assassinatos de cristãos aumentou, igrejas e lugares santos foram destruídos. Os coptas, os habitantes originais do Egito, tornaram-se hoje o alvo de ataques e turbas, e muitos se viram forçados a abandonar seu próprio país.

O radicalismo com base religiosa está crescendo não só em países com maioria muçulmana na população. É importante chamar a atenção para a situação na área da Ásia onde a assembleia de hoje ocorre. Nesta região, comunidades cristãs que existem há mais de trezentos anos, graças a esforços de missionários, cresceram e se desenvolveram. De acordo com os dados dos especialistas, ao longo dos últimos dez anos, o nível de discriminação de cristãos na área aumentou múltiplas vezes. Causa-nos grande ansiedade, a posição das comunidades cristãs da Indonésia, onde nos últimos dois anos o nível de agressão direcionada a cristãos aumentou consideravelmente. E temos informações de discriminação de cristãos vindo de outros países asiáticos também.

Hoje, estamos muito conscientes de que uma das tarefas mais importantes que temos é a defesa de nossos irmãos e irmãs em várias regiões do mundo. Esta tarefa exige uma força de vontade urgente para que possamos empregar todos os meios e alavancas possíveis -  diplomáticos, humanitários, econômicos  e assim por diante. É somente através de um esforço comum energético que poderemos ajudar nossos irmãos e irmãs sofredores em Cristo.

Existe muito a ser feito sobre isso pela Igreja Católica Romana. Existem organizações cristãs que monitoram esta situação e coletam ajuda caritativa para o sofrimento de Cristãos. Nossa Igreja também participa deste trabalho. Acredito que seria de grande benefício se houvessem conferências, trocas de informação e experiência entre organizações cristãs de direitos humanos que estejam tratando do problema.

Os direitos dos cristãos podem ser garantidos apenas se apoiarmos os diálogos entre as comunidades religiosas tanto no nível internacional quanto interestatal. Portanto, uma das direções do trabalho do Conselho Mundial das Igrejas é o diálogo inter-religioso. Acredito que devemos prestar mais atenção no desenvolvimento de uma interação profunda e com interesse com as religiões tradicionais, especialmente com o Islã.

O Conselho Mundial de Igrejas já está trabalhando  para chamar atenção para o problema da perseguição dos cristãos. Como exemplo, posso citar a consultação cristã-muçulmana sobre o tópico da presença e testemunho cristãos no mundo árabe, organizada pelo Conselho em janeiro de 2012 no Líbano, assim como a conferência ali ocorrida em maio deste ano sobre a perseguição de cristãos, na qual o Secretário-Geral do Conselho participou. Também gostaria de ressaltar o trabalho realizado pelo Conselho com o objetivo de reduzir o nível de tensão na Síria, de prevenir a escalação do conflito e de não permitir intervenção militar exterior.

Dirigindo-se aos que confessavam o cristianismo, disse S. Pedro: “Alegrai-vos, na medida em que sois coparticipantes nos sofrimentos de Cristo;  de modo que, quando Sua glória for revelada, também vós podereis alegrar-vos com abundante júbilo’ (1 Ped. 4:13).  Relembrando estas palavras, desejamos em oração que o Todo-Misericordioso Senhor conceda conforto e alegria aos afligidos e oprimidos para que eles, sentindo a ajuda e compaixão dos irmãos e irmãs que está longe geograficamente, mas próximos na fé, possam encontrar dentro de si a força, com a Graça de Deus, para irem mais distante na trilha da fé resoluta.

Concluindo meu pronunciamento, gostaria de agradecer do fundo do meu coração às comunidades cristãs da Coreia do Sul pela hospitalidade que nos demonstraram e pela excelente organização da Assembleia Geral. A Igreja Ortodoxa russa tem grande apreço pelo povo coreano, em sua luta pela unidade, e em oração e em atos apoia os processos pela superação das tensões nas relações entre os dois países da península coreana.
Para todos os presentes, participantes da Assembleia, eu rogo o auxílio de Deus para os trabalhos comuns e para os trabalhos que cada um de nós realiza em nossas igrejas e comunidades. Que nosso testemunho torne-se a palavra da verdade que o mundo tanto precisa hoje.

http://www.aoiusa.org/blog/met-hilarion-the-voice-of-the-church-must-be-prophetic/

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Santa Proteção

Agia Skepi - Santa Proteção


adaptação do original em: http://www.johnsanidopoulos.com/2009/10/panagia-world-war-2-and-why-we.html

No dia 15 de agosto de 1940, na costa leste da Grécia, perto da ilha egeia de Tinos, uma ilha especialmente dedicada à Santa Virgem mais do que qualquer outra, que uma grande tragédia ocorreu. Enquanto milhares e milhares de peregrinos estavsm celebrando a alegre Festa da Dormição da Teotókos, a tripulação de um pequeno navio grego chamado Elli também participava das festividades em alto-mar. De repente, o navio foi torpedeado e afundado por um submarino italiano. O cais de Tino foi igualmente torpedeado no meio das festividades. Este foi o início do envolvimento da Grécia na guerra. 

A entrada oficial da Grécia na guerra só ocorreria no dia 28 de outubro do mesmo ano. Exatamente isto é que celebramos nessa data, comemorando a recusa do ultimato italiano por parte do ditador Ioannis Metaxas. O ultimato exigia que a Grécia permitisse às forças do Eixo que penetrassem território grego e ocupassem certos "locais estratégicos" não especificados ou encarassem a guerra. A maioria dos estudiosos hoje concordam que a resposta não foi exatamente "Não" ou "Oxi", mas "Então é a guerra", em francês, língua diplomática, "Alors, c'est la guerre". Com esta declaração, relata-se que milhares de gregos saíram às ruas e começaram a gritar "Oxi!"para o ultimato italiano. No dia 6 de abril de 41, os nazistas uniram forças com os fascistas e atacaram a Grécia.

Na Festa da Proteção da Santíssima Teotókos, ou Agia Skepi (28 de outubro), imploramos a defesa e assistência da Rainha dos Céus, "Lembra-te de nós em tuas orações, Ó Senhora, Virgem e Mãe,que não pereçamos pelo aumento de nossos pecados. Protege-nos de todo mal e das horríveis tristezas, pois em ti temos esperança, e venerando a Festa de tua Proteção, te glorificamos."

Na tradição ortodoxa geral, a Festa da Proteção da Mãe de Deus cai no dia 1 de outubro. Na Grécia, porém, foi transferida para o 28 de outubro depois da II Guerra Mundial, com a comemoração anual do Dia do Oxi. Isto foi feito para comemorar a grande ajuda e proteção da Teotókos à nação grega através da história, e, especialmente durante a II Guerra, durante a qual muitos milagres ocorreram. 

A relação entre a Teotókos e a nação grega se estende até o Império Greco-Romano, e foi revivida nos tempos modernos durante a Revolução Grega de 1821. Por esta razão, em Atenas, no dia 25 de março de 1838, quando a primeira celebração oficial da Revolução Grega ocorreu, foi determinado por um decreto do rei Oto que o 25 de março seria celebrado como o dia da Regeneração Nacional, embora a revolução tivesse começado alguns dias antes. De fato, a escolha desta data em particular demonstra a importância e o papel principal que o Cristianismo tinha na vida do povo grego, dado que o dia que a revolução iniciou-se também foi considerado o dia da alegria religiosa, como indica o poema de Popi Matsouka-Zachari de Arta e intitulado "A Mensagem do 25 de Março":

Panagia e liberdade
Duas palavras sagradas
Duas palavras cujos significados
Preenchem nossos corações
Com frêmito e estupor
A mãe de todos os povos
Mãe universal
E a querida liberdade
O sonho de todo povo
Com luz celestial
Com um brilho do alto, nos iluminaram
Duas visões, duas ideias invencíveis
Venham! Guerreiros
Nunca parem
Ambas sãos vossas
A Mãe e a Liberdade
E os corações de todos estão convosco!

O papel da Virgem Maria na Grécia também foi enorme durante a 2a. Guerra, tendo uma função catalítica, não só porque ela estava na base da fé do povo, mas também porque, com suas intervenções miraculosas, ela provou ser a maior aliada das forças armadas gregas.

Naturalmente, milagres e aparições foram relatados em muitas regiões da Grécia durante a guerra, mas na frente de batalha, na fronteira da Grécia com a Albânia, e nos Pindo, a Virgem Maria foi a protetora e líder dos que lutaram por seu país sob as piores circunstâncias. A fé deles era tão forte que podiam vê-la encorajando-os e "cobrindo-os protetivamente, enquanto lutavam entre as neves dos Montes Pindo e da Albânia.

É típico o relato de Vassiliki Bouris, sobrinha de Spyridon Houliaras, que lutou na fronteira. Segundo Vassiliki, seu tio costumava narrar incidentes da guerra a seus parentes antes de morrer. O que mais o marcou, porém, foi um milagre da Virgem Maria. Enquanto os soldados estavam lutando sob condições terrivelmente adversas, a Panagia surgiu na frente deles e como uma protetora, os cobriu com seu manto, guiando-os até o seu inimigo, para confrontá-los.

Este milagre é corroborado pelos relatos de outros soldados da época que lutaram nos Montes Pindo. Na frente, os soldados gregos tinham a mesma visão por toda parte: à noite surgia uma figura feminina, alta e magra, caminhando com seu lenço sobre os ombros. Para os soldados ela não era nenhuma outra senão a Virgem Maria, defensora e general dos gregos.

Tasos Rigopoulos, soldado em 1940, faz o seguinte relato da frente na Albânia:

"Meu irmão, Niko. Escrevo-te de um ninho de águia 400 metros mais alto que o topo do Parnitha. Tudo a minha volta está branco pela neve. A razão pela qual te escrevo não é para falar do encantamento do monte Morava coberto de neve, e toda sua beleza selvagem. Meu propósito é compartilhar contigo a experiência que tive, o que vi com meus próprios olhos. É algo que temo que não acreditarias se ouvisses de outros.

Alguns momentos antes de atacarmos os blocausses de Morova, vimos uma mulher alta, vestida de preto, de pé, a uns 13 metros. O guarda gritou: "Identifique-se". Não houve resposta. Com raiva, gritou mais uma vez. Naquele momento, como que atingido por um relâmpago, todos nós sussurramos: "A Panagia"! Ela rompia na direção do inimigo como se tivesse asas de águia. Nós a seguíamos. Podíamos constante,ente sentir a bravura que ela nos transmitia. Foi uma luta dura de uma semana até conseguirmos tomar os blocausses de Ivan-Morova. Ela estava sempre à frente. Quando finalmente vitoriosos, estávamos avançando para uma indefesa Koritsa, nossa grande defensora tornou-se vapor, uma suave fumaça, desaparecendo no ar."

Na cordilheira de Ródope, os soldados do 51o Batalhão Independente, sob o comando do Major Petrakis também testemunharam um milagre. A partir do dia 22 de janeiro, toda noite, às nove e meia, a artilharia inimiga começava a atirar contra o batalhão e contra a estrada que era usada para transportar veículos. Estávamos muito nervosos e tivemos pesadas baixas. Os batedores não conseguiam localizar a artilharia inimiga, a qual estava mudando de posição toda noite.

A situação era realmente desesperadora. Foi em uma noite de fevereiro, quando a artilharia inimiga iniciara uma saraivada novamente. "Panagia, nos ajude, nos salve!", gritou espontaneamente o major. Repentinamente, uma nuvem luminosa tornou-se visível à distância. Algo como um halo formou-se e a imagem da Teotókos apareceu. Ela começou a curvar-se ao chão e parou exatamente sobre uma ravina. Todos no batalhão tremeram ao testemunhar o milagre. "Um milagre, um milagre!", gritavam os soldados, enquanto oravam e faziam o sinal da cruz. Imediatamente, enviaram uma mensagem à artilharia grega, ouviram-se o canhões, e logo depois o silêncio. As bombas gregas tinham alcançado um tiro perfeito.

"Não importa como a fé se expresse durante a guerra, o certo é que auxilia o soldado que é testado. E a imagem da protetora lhe dá esperança e otimismo. O povo de Arta, lutando na frente de batalha, não temia nem os morteiros, nem as balas do inimigo, desde que tivessem a imagem da Panagia à sua frente."

Yiannis Tsarouchis, depois de ter pintado "A Virgem da Vitória" na tampa de uma caixa de arenque tendo em mente uma versão anterior mal-feita, pôs-se a caminho de encontrar o comandante para apresentar o seu trabalho. A imagem já adquirira alguma fama de ser miraculosa, e antes que fosse levada os soldados de Arta "em um estado de excitação religiosa, exigiram que o milagroso ícone ficasse pelo menos mais uma noite em seu campo.

Todos os soldados gritavam: "A Virgem, a Virgem! Deixem-na aqui mais uma noite". De repente o alarme soou. Nos atiramos ao chão conforme as ordens que recebêramos  mas nenhum dos soldados de Arta fez o mesmo. "Ei, camarada! Como pode ter medo quando você tem a Virgem em suas mãos?", perguntou um deles.

Era típico que nos cartões de identificação militares, logo ao lado da identificação pessoal, houvesse uma imagem da Panagia. E pouco antes de atacar, oravam dizendo "Panagia mou! (Minha Toda Santa), três vezes, e avançavam.

N. Dramourtianos conta os seguintes milagres testemunhados durante a 2a. Guerra:
"Nossa companhia recebeu uma ordem para tomar e assegurar terreno para a construção de uma ponte. Acampamos entre os penhascos. Assim que nos preparamos, começou a cair uma neve fina. Assim continuou por duas noites, chegando a acumular cerca de dois metros em algumas áreas. Ficamos isolados do comissariado e tínhamos comida para durar um dia. Já que tínhamos fome e nenhuma esperança de um amanhã, devoramos tudo.

A partir daí foi um martírio. A sede era satisfeita pela neve, mas a fome nos consumia. Ficamos esqueléticos. Nossa moral continuava de pé, mas a natureza tem seus limites. Alguns sucumbiram. O mesmo fim aguardava a todos nós "pela fé e nação".

Nosso capitão teve naquele momento uma inspiração milagrosa. De bolso em seu peito, retirou um ícone de papel da Panagia, o qual pôs em um local alto e nos convidou a ficarmos à sua volta. "Meus bravos jovens", disse ele. "Neste momento crucial, apenas um milagre pode nos salvar. Ajoelhem-se, e roguem à Panagia, a mãe do Deus-homem, por sua ajuda." Nos ajoelhamos, erguemos nossas mãos e rogamos fervorosamente. Não tivemos nem tempo de nos levantarmos e logo ouvimos o som de sinos. Achamos isso estranho e pegamos nossas armas, tomando nossas posições com determinação.

Nem um minuto passou e vimos uma enorme mula se aproximando, totalmente carregada. Voamos até ela. Um animal sem condutor, caminhando pela montanha, com pelo menos um metro de neve não é natural. Nossa Senhora Teotókos o guiara. todos juntos agradecemos cantando serenamente, e com todo o coração, "Ti Ypermaho" (A ti, Líder e Campeã). O animal trazia todo um buffet de comidas: kouramanes (tipo de pão utilizado pelo exército), queijos, conservas, conhaque, e outras coisas. "Suportei muitas e inimagináveis dores na guerra. Mas este evento permanecerá inesquecível porque não havia saída. A saída foi dada pela Panagia".

A importância das intervenções miraculosas da Virgem Maria foi reconhecida pelo estado grego logo depois do fim da guerra. Por esta razão, a celebração de Agia Skepi foi transferida, em 1952, do 1 de outubro para o 28 de outubro, como agradecimento por sua ajuda miraculosa ao povo grego naquele momento de grande dificuldade.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Verdade e Amor


Na Igreja Ortodoxa é comum utilizarmos os conceitos de "akribéia" e "economia", isto é, o primeiro referindo-se ao rigor doutrinário derivado da sua precisa descrição da realidade, e o segundo à "administração da casa", ou a necessária aplicação pastoral dos princípios universais nas circunstâncias concretas. É a diferença entre a descrição científica e precisa de um câncer, que é fundamental para que sua terapia seja efetiva, e o modo pelo qual o médico vai explicar e lidar com o doente e a família.

Existe uma terrível confusão desses conceitos nos dias de hoje,na Igreja Ortodoxa inclusive. Muitas pessoas até sinceras em sua vocação pastoral vêem na necessária adaptabilidade da ação pastoral uma espécie de deslegetimização da defesa da verdade absoluta, pois está seria fria, cruel ou apenas arrogante. É como se, no exemplo dado, o médico deixasse de lado as inúmeras vantagens de ter um conhecimento preciso da doença, porque o doente precisa de consolo, além do remédio que a ciência pode lhe dar. "Precisamos dar injeção, mas é uma intolerância terrível falar disso, porque o doente tem fobia de agulha" - diriam muitos.

Isso, porém, é uma atitude pervasiva no mundo moderno. Trocam-se verdades tão necessárias quanto dolorosas por qualquer ação que simplesmente alivie a dor, mesmo que não cure a doença, mesmo que seja vil. Uma pessoa ruim e mesquinha mas que anestesie as pessoas de seus conflitos e dores é vista como moralmente superior a uma que proponha o enfrentamento com um realidade dolorosa como etapa de um desenvolvimento maior.

Se é assim neste nível de dicotomia, quão mais em situações e pessoas menos radicais tanto para um lado quanto para o outro, onde o medo da dor e o amor ao bem estão mais difusos e menos visíveis? E quão pior é isso quando isso acontece precisamente com pessoas cujos papéis deveriam ser exatamente como porta-vozes da akribeia, como um cientista que tem o dever de explicar as mais feias doenças com a mais absoluta precisão exatamente para que os médicos clínicos possam realizar as decisões de tratamento mais adequadas. Em verdade, não existe contradição entre uma coisa e outro. É o mais absoluto rigor da akribéia que provê os fundamentos concretos da mais amorosa economia.