terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Sobre a Beleza

Ao escritor ortodoxo Dostoievsky é atribuída a citação que diz "a Beleza salvará o mundo". Evidentemente não falava da beleza mundana, aquela que meramente nos atrái, mas sim da Beleza sublime, aquela que nos eleva, destacada por Platão e Aristóteles como idêntica ao Justo e ao Bom. Falava da Beleza consagrada na obra máxima da espiritualidade ortodoxa depois da Bíblia, a Filokalia (de "filo" que significa o amor de amizade, e "kalia" significando "ao que é Belo"). Assim como a Grécia antiga nos deu a Filosofia,o amor à sabedoria, a Grécia cristã nos deu a Filokalia, que nada mais é que o viver filosófico imerso na graça salvífica do terno amor da Santíssima Trindade por nós. 

Essa Beleza verdadeira tem sido abandonada pela cultura auto-proclamada superior desde há muito tempo. Nós vivemos uma fase que o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho identifica precisamente como "apeirokalia", a falta da experiência do que é belo, isto é, nós somos educados e vivemos nossas vidas sem sequer conhecer este belo sublime. Felizmente, é claro, a ortodoxia cristã preservou esta experiência do Belo na arquitetura e design das igrejas ortodoxas tradicionais, nos ícones escritos de acordo com os padrões tradicionais que existem não por "imposição", mas porque são os instrumentos adequados para a expressão do sublime na vida de Cristo e dos santos, e que, afinal, é uma só. Preservamos a experiência do Belo também na música religiosa ortodoxa tradicional, que realmente não é feita para ser apetecícel, isto é, não é feita para ser agradável, mas para operar terapeuticamente em nossa alma e sensibilidade. De fato, a música ortodoxa tradicional, em conjunção com as Liturgias, as leituras e as festas da Igreja, são uma terapia de cura da nossa alma, do nosso estado decaído pelo pecado e, inclusive, da nossa percepção do Belo. 

Como testemunho dessa problemática em relação ao Belo, trago um artigo de um apresentador inglês de documentários. Ele apresentou um programa sobre o Belo na arte e o texto abaixo é seu testemunho e opinião a respeito da reação que obteve do público.

Sobre a defesa da beleza
ROGER SCRUTON | 04 JANEIRO 2011

O que eu sei é que muita gente por aí sente o que eu sinto. Eles concordam comigo que a beleza importa, que a profanação e o niilismo são crimes e que deveríamos encontrar um modo de exaltar nosso mundo e dotá-lo de uma significação mais do que mundana.

Para o bem e para o mal, eu sou identificado pelas elites britânicas como a pessoa com quem se pode contar para defender o indefensável e que se pode permitir defender o indefensável, mesmo em uma televisão estatal (quer dizer, a BBC), desde que a defesa seja suficientemente diluída por outros defendendo o óbvio. No código oficial, "indefensável" quer dizer "conservador", enquanto que "óbvio" quer dizer "liberal-esquerdista". Assim sendo, quando a BBC me pediu para participar de uma série de televisão sobre a beleza, esperava-se que eu sustentasse que uma tal coisa realmente existe, que não é só uma questão de gosto, que ela está ligada ao nobre, àquilo que se deve aspirar e ao que há de sagrado em nossos sentimentos, e que a cultura pós-moderna, que enfatiza a feiúra, o desalento e a profanação, é uma traição a um chamado divino. Então, foi isso o que eu disse, já que, afinal de contas, era para isto que eles estavam me pagando. Para alcançar o equilíbrio que a BBC é obrigada por seu regimento a apresentar, dois outros programas foram encomendados, reafirmando as ortodoxias. Eles afirmaram que a arte não tem a ver com a beleza, mas com a originalidade e a originalidade quer dizer você se exibir com a língua (ou algum outro órgão apropriado) para fora.

Em "Por que a beleza importa" (http://www.youtube.com/watch?v=65YpzZrwKI4) , eu falei um pouco sobre arte, mas estava mais preocupado em chamar atenção para o lugar da beleza na vida cotidiana -- nas maneiras, nas roupas, na decoração de interiores e em edifícios vernaculares comuns. Eu critiquei tanto a arquitetura funcional de concreto e vidro, que destruiu cidades em todo o mundo, quanto as maneiras egocêntricas que fizeram o mesmo com a vida doméstica. Tentei explicar por que os filósofos do Iluminismo acompanharam Shaftesbury ao colocarem a beleza no centro do novo código de valores seculares. Para Shaftesbury, Burke, Kant, Schiller e seus seguidores, sugeri eu, a beleza era o caminho de volta para o mundo que eles estavam perdendo, com a perda do Deus cristão -- o mundo do sentido, da ordem e da transcendência, que deve ser constantemente emulado neste mundo se quisermos que nossas vidas sejam verdadeiramente humanas e verdadeiramente plenas de significado. E afirmei em seguida que desde as piadas pueris de Marcel Duchamp, repetidas reiteradas vezes em toda mostra de faculdade de graduação em artes na Grã-Bretanha, um hábito de sarcasmo e profanação tinha se apoderado do exercício das artes visuais.

Por isso, os artistas britânicos de hoje - pelo menos os reconhecidos pela cultura oficial - não têm muito mais a nos mostrar além do quanto são repulsivos. Me parecia óbvio que a pintura de Delacroix mostrando sua cama por fazer ( http://is.gd/k60DO , na Maison Delacroix, em Paris) era uma verdadeira obra de arte, que mostra algo sobre a condição espiritual humana, enquanto que a famosa cama de Tracey Emin ( http://is.gd/k60XQ , na galeria Tate Modern, em Londres) é só uma cama desarrumada. Podemos deduzir, pela visão desta cama, um bocado a respeito da pessoa que a desarrumou, mas isto não a distingue de nenhum outro entulho deixado no rastro de uma vida humana. O sentido superior que é a meta da arte -- o sentido que mostra por que a vida importa -- é algo que esta cama não alcança nem tem como meta.

Eu recebi mais de 500 e-mails de telespectadores, todos eles, exceto por um, dizendo: "Graças a Deus alguém está dizendo o que é preciso ser dito," metade deles acrescentando, "mas como é que deixaram você dizer isso na BBC?" ( http://is.gd/k623p ) Enquanto isto, os colunistas juntaram-se em bandos para lamentar o caráter triste, anômalo e reacionário do pobre Scruton, e agradecer à BBC por mostrar o absurdo e o anacronismo das opiniões do professor, já bem idoso. Waldemar Januszczak, que fez um outro dos filmes da série sobre a beleza, preparou um verdadeiro libelo para assassinato de caráter no Sunday Times ( http://is.gd/k62nc ), a fim de aconselhar a seus leitores, antes da exibição de meu filme, a desconsiderarem o que quer que eu pudesse tentar lhes dizer.

O episódio foi, para mim, revelador e instrutivo a respeito de meu país e sua cultura. Eu não digo que meu filme tivesse qualquer outro mérito além de sua honestidade. Mas ele gerou provas esmagadoras de que sua visão da arte e da estética é compartilhada por muitos espectadores britânicos e que a cultura oficial não está só divorciada destas pessoas, mas é profundamente hostil ao que elas acreditam, o que elas sentem e ao que elas aspiram. A arte niilista de nossa época é repassada ao povo britânico como uma reprimenda, que ele deve aceitar com toda humildade e em um espírito de desculpas por ter querido algo de "superior." Não há nada de superior -- esta é a lição a ser aprendida com a Arte Jovem Britânica (http://en.wikipedia.org/wiki/Young_British_Artists), e com as pilhas de lixo sem nexo que ela manda para nossos museus e galerias. Só podemos entender a condição humana, ela nos diz, se adotarmos uma postura de grosseria e confrontação e se pusermos a língua para fora.

ESTE É SÓ UM ASPECTO DE algo que os americanos em visita à Grã-Bretanha notam cada vez mais. Nos anos 50 e 60, quando minha geração estava crescendo, os britânicos eram ativamente engajados pelo sistema educacional e os mundos da arte e da religião, em uma cultura da aspiração. Esta foi a época de Henry Moore ( http://pt.wikipedia.org/wiki/Henry_Moore ) e Benjamin Britten ( http://pt.wikipedia.org/wiki/Benjamin_Britten ), de Graham Sutherland ( http://en.wikipedia.org/wiki/Graham_Sutherland )e Michael Tippett ( http://en.wikipedia.org/wiki/Michael_Tippett) . W. H. Auden ( http://pt.wikipedia.org/wiki/W._H._Auden )era uma voz importante, assim como era o ex-americano T. S. Eliot ( http://pt.wikipedia.org/wiki/T._S._Eliot ). A Grã-Bretanha era um lugar de grande significação hístórica e religiosa. Era um privilégio pertencer a esta terra e por toda a parte a história nacional tinha deixado as marcas e os prodígios de um modo de vida superior. Correndo o risco de exagerar, pode-se dizer que meu país, naquela época em que a geração do baby boom avançava em direção a uma perpétua imaturidade, era um ensaio da redenção. Sua arte, cultura e religião eram devotadas ao ideal de uma comunidade na qual a decência, a curiosidade e a abnegação mandavam em tudo. E lá permanecia, como uma espécie de sobra da propaganda do período da guerra, a crença no gentleman, que encara a vida com uma postura de devoção em auto-sacrifício a ideais sem sentido -- quer dizer, sem sentido segundo o ponto de vista do observador cínico, mas que não eram sem sentido de forma alguma, dado o espírito com que eram aceitos.

O americano em visita à Grã-Bretanha hoje, e sobretudo se ainda tiver lembrança daquele mundo extraordinário no qual a decência, a auto-censura e o queixo duro eram os princípios dominantes, muitas vezes recua com horror diante do que encontra. A cultura pública é a do apetite e da sátira e o país inteiro parece querer escandalizar, como se estivesse com uma língua coletiva para fora. Muitos amigos americanos me dizem isto e falam sentidos a respeito da mudança daquela Grã-Bretanha que eles costumavam visitar com uma sensação de estarem voltando para casa, para esta Grã-Bretanha que eles visitam hoje, que é uma terra de estranhos. O estranho, entretanto ( e a reação a meu filme parece confirmar isto) é que muitos dos britânicos concordam com eles. Os britânicos estão numa terra de estrangeiros e a cultura que os governa é de uma natureza a qual muitos de meus compatriotas não podem pertencer de coração.

O espírito oficial que predomina nas escolas e universidades e também no Partido Trabalhista é de desprezo e repúdio aos antigos ideais. A cultura oficial britânica é retratada com exatidão pela cama de Tracey Emin. É uma cultura de caos emocional e simpatias aleatórias, na qual lealdades tradicionais não desempenham nenhum papel. A própria Emin é filha ilegítima de um cipriota turco e sua situação é típica de sua geração. Incapaz de se identificar com um país ou um modo de vida, educada por um currículo de contos de fada multiculturalistas e aprendendo na escola de arte que você encontra seu lugar no mundo através da transgressão e da auto-exibição, ela teve o bom-senso de ser um verdadeiro caos visível ao público. Seus trabalhos podem não ser obras de arte, no sentido de que minha geração foi educada a compreender este selo honorífico, mas eles mostram um mundo que a cultura oficial da Grã-Bretanha optou por endossar.

A prova circunstancial da reação a meu filme não demonstra nada. O que eu sei é que muita gente por aí sente o que eu sinto. Eles concordam comigo que a beleza importa, que a profanação e o niilismo são crimes e que deveríamos encontrar um modo de exaltar nosso mundo e dotá-lo de uma significação mais do que mundana. Mas talvez haja muitos ou até mais que acreditam na fábula "multicultural" oficial, que nos diz que não há nada de especial na Grã-Bretanha, que os antigos ideais e dignidades são meras ilusões e que o objetivo da arte é cobrir de desprezo os valores de pessoas antiquadas. E a impressão dos visitantes americanos é correta; não é só a cultura oficial, mas a geração ascendente de Neo-Britânicos que se decidiu pela zombaria à dignidade e pela transgressão às normas da vida social. Se for assim, então se fez justiça a pelo menos uma parte de meu filme: a saber, que a beleza importa e que não se pode cobrir de desprezo a beleza sem perder de vista o sentido da vida.




Roger Scruton: The American Spectator, 15 de maio de 2010

Original: On Defending Beauty

Tradução e links: Dextra
http://www.midiasemmascara.org/artigos/conservadorismo/11739-sobre-a-defesa-da-beleza.html

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