quarta-feira, 8 de junho de 2011

Verdade. Beleza. Cristo.


O cristianismo ortodoxo ensina que existe uma clara diferença entre Deus, que é incriado, e o mundo, que é criado. Deus é bom, e porque Deus criou o mundo, o mundo é bom; mas o mundo também é caído, e como resultado disso surgem novas diferenças: entre o velho e o novo, morte e vida, o profano e o sagrado, todos os tons de sombras e a própria Luz. A salvação pode ser entendida como o crescimento da pessoa humana, saindo das categorias anteriores para as posteriores – do velho, do morto, do profano, e das sombras para o novo, para a vida, o sagrado e para a luz. Esta jornada de salvação nos é apresentada de modo profundo nos estilos e formas tradicionais do culto cristão.

Considere, por exemplo, o uso da língua litúrgica. A língua que utilizamos em nossos ofícios de culto contém um estilo elevado que é digno da mensagem elevada que pretende transmitir – a mensagem da salvação. Então, a língua litúrgica é feita para reforçar no adorador a percepção da distinção entre o mundo dos homens que ele deixa para trás, e o mundo de Deus que ele é chamado a entrar. E não é só a linguagem: a arquitetura da igreja, a música, a iconografia, as vestimentas, cada uma destas é, dentro da Igreja, um modo de expressão único que é divinamente inspirado.

Existem os que crêem que o ofício de culto não deveria reforçar a distinção entre o sagrado e o profano. Para eles, a estética da igreja deve imitar a estética secular – bandas de rock contemporâneas ao invés de música litúrgica, cartazes inspiracionais ao invés de ícones, “células” ao invés de sacramentos. Mas tudo isso pode ter uma conseqüência perigosa: o mundo de Deus desaparece.

Se a forma da arte da Igreja for igual à forma da arte do homem caído, então não haverá expressão material da nossa salvação, e a Igreja terá desistido do núcleo do seu testemunho na terra. Nossa salvação só é possível porque o Deus Imaterial assumiu a criação material (isto é, Deus que é Espírito, tomou sobre Si a carne e a natureza humanas). Portanto, a Igreja utiliza a criação material tanto para anunciar a verdade da Encarnação em sua plenitude, mas também para permitir nossa participação no Senhor que ascendeu ao Céu, carregando a Criação Consigo.

Os modos de expressão do homem são corrompidos, e portanto, inadequados para a tarefa de adquirir conhecimento a respeito de Deus, dado que fluem a partir de nosso estado pecaminoso. Já os modos de expressão da Igreja são divinamente inspirados e portanto um e outro não podem ser idênticos. As formas materiais particulares da Igreja não sugerem um Deus distante de nosso mundo caído, mas, ao contrário, proclamam Sua presença em nosso meio.

Considere duas realidades fundamentais da relação do homem com Deus: primeiro que caímos e ficamos longe de Deus; e em segundo lugar, que Deus veio nos restaurar para Ele. A Igreja proclama ambos, mas não o realiza amarrando Deus em nossa natureza partida, mas elevando o homem à perfeição que é Deus. O culto, para o cristão ortodoxo, não é o ato de fazer Deus ser real para nós – isto já foi realizado por Cristo – mas de fazermos nós mesmos sermos reais para Deus.

Cristo realiza a deificação do homem através de Sua participação na natureza humana criada, e o homem se apropria dessa deificação pela participação no Divino, especialmente através da vida sacramental da Igreja. Este encontro do humano com o divino é uma experiência física total, que não se limita ao intelecto, mas afeta tudo que é da natureza humana, incluindo seus cinco sentidos.  A arte secular exerce uma enorme influência na alma, precisamente porque o ser humano é uma unidade integrada de corpo e alma, do físico e do espiritual. A Igreja, então, utiliza a matéria – ou, por outra, a criação material – para produzir formas de arte espiritualizadas que adornam, expressam e clarificam os Mistérios Sacramentais da Igreja, tornando-as, assim, instrumentos da deificação do homem. A iconografia, o canto, os hinos, são Mistérios em si mesmos, porque, diferentemente da arte secular, possuem a capacidade de deificar.

Por esta razão, nossa linguagem e iconografia e canto devem ser diferentes das do mundo caído, e devemos nos conformar estritamente às normas estabelecidas pelos divinamente inspirados Pais da Igreja, cujas próprias almas estavam purificadas a ponto deles terem tornado-se límpidos canais da influência divina.

Considerando esta necessária relação entre a possibilidade da salvação e a arte sacra utlizada para proclamar esta possibilidade, podemos dizer que o modo pelo qual um grupo de cristãos cultua diz ao mundo o que ele acredita a respeito da encarnação de Cristo.

Adaptado de “The Pentecostarion”, publicado pelo Monastério da Santa Transfiguração, em Brookline, Massachusetts.

Artigo original em: http://www.antiochian.org/discover

2 comentários:

Rauly Silva disse...

Gia sas! Sou católico mas concordo totalmente com o que está escrito ai... Que saudade disso, não sei qual a dificuldade em nós romanos separarmos liturgia de celebração pessoal... Mas parabéns pelo artigo!

Fabio disse...

Oi Macunaíma!
Não é uma questão dos católicos em particular mas da mentalidade superficial de consumo da modernidade. As pessoas vão às igrejas não para receber Deus, não para cultuar Deus, não para serem transformadas por Deus, mas para obterem algum tipo de serviço ou produto: bem estar, saúde, trabalho, auto-afirmação, vaidade espiritual etc. etc. E, evidentemente, o produto tem que vir na embalagem que atenda ao ego de cada grupo: músicas populares para a maioria, igreja dos surfistas, igrejas dos punks. Perde-se exatamente aquela convivência das diferenças, onde se exercita a tolerância e o amor ao próximo que a Liturgia e a paróquia centrado no espaço geográfico ao invés do espaço psicológico e social, proporcionam.

As liturgias tradicionais ocidentais e orientais são verdadeiros hospitais e escolas das almas, como muito se diz na Igreja Ortodoxa, um cantinho do céu na terra. Eu li recentemente um artigo de um fiel ortodoxo comentando exatamente sobre isso. O que o livro do Apocalipse nos revela é precisamente que a vida espiritual na eternidade é uma grande alegria de convivência com Deus no que é descrito ali de forma bem clara como uma *liturgia*. A Liturgia tradicional não é uma coisa do passado. É uma coisa da eternidade. Se há diferença entre ritos é por causa da nossa imperfeição em realizar o culto perfeito que será prestado na Eternidade. Mas é em cânticos e ofertas e gratidão e partilhamento da vida de Cristo que viveremos na Eternidade. Estaremos acostumados a isso quando chegarmos lá, ou vamos ficar angustiados porque não tem o "Rap do Senhor"? Essa recusa interior do caráter de Deus em favor de atender aos traços da nossa personalidade, sabemos bem aonde leva... infelizmente.