Mostrando postagens com marcador Tradição Ortodoxa Lusitana. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Tradição Ortodoxa Lusitana. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 23 de junho de 2015

O Império Bizantino e a Península Ibérica


Um dos mais ambiciosos planos do Imperador Justiniano (527-565) era resgatar a Península Ibérica dos Visigodos e dos Suevos, a Itália dos Ostrogodos, e a África dos Vândalos; o Imperador Heráclios (610-41) é que finalmente desistiria de todo o plano. As relações entre o oriente grego e a Ibéria eram multifacetadas e íntimas, especialmente durante o século VI (01). Surpreendentemente, não foi na Espanha Visigótico-Bizantina, mas no distante noroeste da Península, habitada pelos Suevos(NT02), que ocorreu tradução de literatura. Ao mesmo tempo, ou pouco depois, foram compostas ali traduções dos Apopthegmata e compilações similares, por ordem do Apóstolo dos Suevos, Martinho de Braga (d.ca. 580). Um certo Paschasius traduziu partes de um codex chamado Vitas Patrum Grecorum que lhe fora dado com esse mesmo exato propósito. A tradução ficou conhecida como Liber Geronticon (02). O próprio Martinho, que havia morado na Palestina antes de fundar o mosteiro de Dume entre os Suevos e se tornar arcebispo na cidade real sueva de Braga, traduziu uma coleção chamada de Setentiae Patrum Aegyptiorum. Também é-lhe atribuída uma coleção de cânones gregos.

Na segunda metade do sétimo século, quando o reino suevo foi incorporado à monarquia visigótica, o Abade Valerius de Bierzo produziu na Galícia uma edição do Vitas Patrum, a qual continha traduções de vidas de santos gregos; não é claro se eram o trabalho da escola de tradutores galegos fundada por Martinho de Braga ou se vinha da Itália.(03)

A população católico-românica e os godos arianos do reino visigótico reconciliaram-se com o Bispo Leandro de Sevilha (578-99), que viera da cidade bizantina de Cartágena (NT03). O sucessor no bispado de Sevilha foi o irmão mais novo de Leandro, Isidoro (599-636), que, no fim das contas, tornou-se o mais famoso autor latino da Espanha.

Seu curto tratado, De ortu et obitu patrum (Migne PL 83, cols. 129-59) contém um núcleo com vidas de profetas, traduzido do grego, dentro de uma série de oitenta e seis rascunhos biográficos de figuras do Antigo e Novo Testamentos; ver Τ. Schermann, Prophetarum vitae fabulosae(Leipzig 1907), and Propheten- und Apostellegenden nebst Jüngerkatalogen des Dorotheus und verwandter Texte, TU 31/g (Leipzig 1907); Α Vaccari, "Una fonte del 'de ortu et obitu Patrum' di S. Isidoro," in Miscellanea Isidoriana (Rome 1936), pp. 165-75.

O principal trabalho de Isidoro é o Etymologiae (Orígenes), o qual serviu o Ocidente por séculos. Como um segundo Varro, ele tentou, em vinte livros curtos, resumir conceitualmente o trivium, o quadrivium, a medicina, o direito, a teologia, a história, a filosofia, a zoologia, a geografia, a produção de livros, a arquitetura, a mineralogia, a metalurgia, a agricultura, questões militares, jogos públicos e privados, construção de navios, e outras áreas de conhecimento e tecnologia. Como geralmente era o caso na antiguidade, o conhecimento transmitido por Isidoro era primariamente grego, via intermediários latinos dos quais ele obtinha essas informações. Vários dados gregos foram preservados nos trabalhos de Isidoro. Ele utiliza palavras gregas, que são escritas em alfabeto grego e incorporadas ao texto latino de acordo com a prática antiga (04). O alfabeto grego é explicado historicamente - segundo os modelos antigos - no início das obras. Além disso ele inclui a importante doutrina da litterae mysticae, que era típica da avaliação medieval do grego: (05)

Cadmus, o filho de Agenor, primeiramente trouxe dezessete letras gregas para a Grécia desde a Fenícia: Α Β Γ Δ Ε Ζ 1 Κ Λ Μ Ν Ο Π Ρ C T Φ. Palamedes acrescentou três mais durante a Guerra de Tróia: Η Χ Ω. Depois, o poeta lírico Simonides acrescentou mais três letras: Ψ Ξ Θ. Pitágoras de Samos primeiramente desenvolveu a letra Y tendo como modelo a vida humana: o traço de baixo significa os anos da infância, ainda incertos, e que não se entregaram ainda ao vício ou virtude. A bifurcação, porém, inicia-se na adolescência: seu braço direito é abrupto, mas leva a uma vida abençoada; o esquerdo é mais fácil e leva ao desastre e à destruição. Persius diz sobre essa letra: "E a letra que estende os braços samianos, revela a trilha ascendente na mão direita" [III 56].

Os gregos possuem cinco letras de mistério. A primeira é o Y, a qual significa a vida humana, e da qual acabamos de falar. A segunda é o Θ, que significa morte, posto que juízes colocam-na ao lado dos nomes daqueles que condenam à pena de morte. E theta significa ΑΠΟ ΤΟΥ ΘΑΝΑΤΟΥ, i.e. "da morte". Por essa razão, ela também possui um cabo no meio, que é o símbolo da morte. Já foi dito: "Theta, és a mais desgraçada das letras". A terceira, T, significa a cruz do Senhor; por isso é traduzida para o hebraico como "sinal". Sobre essa letra, é dito ao anjo em Ezequiel (9:4): "Vá ao centro de Jerusalém e trace um tau na fronte dos homens que lamentam e suspiram". As duas letras restantes são o Α e o Ω , que foram reclamadas como primeira e última pelo próprio Cristo, pois Ele mesmo diz: "Eu sou o Alfa e o Ômega". Quando essas duas letras movem-se uma para a outra, A move-se para o Ω e o Ω, por sua vez, move-se para o A; de forma que o Senhor quer dizer que o fluir do início para o fim e o retorno do fim para o início está nEle. Mas todas as letras gregas formam palavras e números. Pois a letra chamada alfa significa um, a que se chama beta significa dois, e onde escrevem gama, ela é chamada três, e delta é quatro, e assim todas as letras possuem valores numéricos. Os latinos não usam letras por números, mas delas formam apenas palavras, com exceção de I e X, cujas figura também significa a cruz e tem o valor numérico de dez.

Em outra passagem do trabalho, Isidoro designa a língua grega como uma das três línguas sagradas(06)

Existem três línguas sagradas: hebraico, grego e latim, que são as mais distintas em toda a terra. Pois foi com essas línguas que Pilatos escreveu a sentença do Senhor sobre a cruz. Portanto, é também por obscuridade das Santas Escrituras que um conhecimento dessas três línguas é necessário, para que se possa consultar uma ou outra quando o texto em um língua gerar dúvida sobre um nome ou uma tradução. Ainda assim, o grego é considerada uma língua especialmente esplêndida entre as nações. Pois é mais ressonante que o latim e que todas as demais línguas. Suas variedades classificam-se em cinco componentes: primeiro, o Koiné, isto é "misturada" ou "comum", que todos usam; segundo, o Ático, nomeadamente, a língua de Atenas, que todos os autores gregos utilizaram; terceiro, o dórico, usada por egípcios e sírios; quarto o Iônico e quinto o Aélico. Existem várias características distintas a serem observadas nas línguas gregas. Assim está dividida sua língua.

Uma grande parte dessa explicação é derivada de trabalhos mais antigos, como geralmente é o caso na Etymologiae: Isidoro elogia a beleza da língua grega segundo o modelo de Quintiliano. A doutrina da língua sacra é desenvolvida a partir das afirmações de Agostinho sobre as linguae principales (07). Mas aquele que não apenas usa mas também lê Isidoro, observará que existe uma "linha interna... que conecta todos esses trechos aparentemente desconexos" ("innere Linie ...die sich durch alle diese scheinbar gedankenlosen Excerpte zieht")(08). A vitória de Isidoro no que concerne o conhecimento medieval do grego se dá pelo foco no material fundamental e claramente organizado: a litterae mysticae e a linguae sacrae eram schemata de um novo arcaísmo bem adaptado às recém-cristianizadas nações do Ocidente.

01. P. Goubert, "L' Espagne Byzantine. Influences Byzantines sur l' Espagne Wisigothique, " Revue des Études Byzantines 4 (1946) 111-33.

02. Rosweyde, Vitae Patrum. lib. VII (Migne PL 73, cols. 1052-62). New edition by J.G. Freire, A versão latina por Pascásio de Dume dos Apophegmata Patrum (Coimbra 1971), I/2 (I, 159 ff. Liber Geronticon de octo principalibus vitiis). Freire editou uma outra tradução do Apophtegmata do século VI em Commonitiones sanctorum patrum. Uma nova colecção de apotegmas (Coimbra 1974). Essa coleção é quase idêntica à publicada por Rosweyde no terceiro livro do seu Vitae Patrum sob o nome de Rufinus.

03. Rosweyde incluiu essa tradução no apêndice do seu Vitae Patrum. New edition by C.W. Barlow, Martini episcopi Bracarensis opera omnia(New Haven 1950), pp. 30-51; A coleção de cânones, ibid., pp. 123-44. Cf. K. Schäferdiek, Die Kirche in den Reichen der Westgoten und Suewen(Berlin 1967), pp.120 ff.

04. D. de Bruyne, "L' héritage littéraire de l'abbé Saint Valère, "RB 32 (1920), 1-10. Sobre a Vita S. Mariae Aegyptiacae na compilação, uma das mais antigas traduções de "caráter expressivo", ver Kunze, Studien zur Legende der heiligen Maria Aegyptiaca, pp. 28 ff.; cf. W. Berschin, in Mittellateinisches Jahrbuch 10 (1975),310.

05. "As raízes e etimologias gregas no trabalho de Isidoro, as quais estão corrigidas e impressas em grego na edição de Lindsay, são em muitos casos escritas com alfabeto latino nos manuscritos e geralmente são transmitidas de forma quase ilegível, já que nem sempre exibem as formas linguísticas clássicas mesmo no texto original."; Bischoff, in Latin Script and Letters A.D. 400-900, Festschrift Bieler, p. 209. Na mesma passagem, Bischoff mostra como a palavra latina bannita = syllaba, littera saiu da transcrição do Graeca em Etym. I 16, 1: "nam syllaba dicta est ΑΠΟ ΤΟΥCΥΛΛΑΜΒΑΝΕΙΝ ΤΑ ΓΡΑΜΜΑΤΑ."

06. Etym. I 3.

07. Etym. IX 1.

08. J. Fontaine's Isidore de Séville et la culture classique dans l' Espagne Wisigothique (Paris 1959), I/2 (pp. 58-61) sobre o trecho concernente ao alfabeto grego) contém uma análise detalhada das fontes.

NT01 No original o autor refere-se à "Espanha" como um nome para toda a Península Ibérica, incluindo mesmo as terras de Portugal, indistinção essa que é um erro comum na língua inglesa. Como o público leitor de língua portuguesa preserva uma memória mais precisa da história da Península, e sabendo que é a ela que o autor original se refere, utilizei o termo mais comum em português "Península Ibérica" para a região que o autor do original tem em mente ao escrever "Espanha". 

NT02 O "noroeste da Espanha" no original é claramente a região centro-norte de Portugal, possivelmente alcançando a Galícia, que é precisamente a área que era ocupada pelos suevos, tanto que S. Martinho de Braga (uma das mais tradicionais cidades portuguesas), mencionado logo em seguida, é patrono da fé ortodoxa lusitana.

NT03 Trata-se da mesma Cartagena da Espanha.

Fonte: "Early Byzantine Italy and the Maritime Lands of the West"  

segunda-feira, 4 de abril de 2011

São Martinho de Braga

Caríssimos,


como disse em recente entrevista o Patriarca Bartolomeu I, "Antes do Grande Cisma de 1054, toda a Europa era Ortodoxa. "


Portugal, a pátria-mãe do Brasil, e de onde onde herdamos a fé cristã, também era católico ortodoxo durante todo o primeiro milênio.


Um grande santo ortodoxo do século VI, foi São Martinho de Dume, ou São Martinho de Braga. Nascido na Panónia, região onde hoje é a Hungria, recebeu educação romaica (bizantina), tendo viajado para o Oriente Médio onde familiarizou-se com o monaquismo. Compreendendo ter um chamado missionário na região que hoje é o norte de Portugal e parte da Galícia, viajou ao extremo Ocidente. Ali, foi responsável pela conversão dos bárbaros suevos, que até então eram arianos, para o catolicismo ortodoxo, pela primeira tradução para o latim dos "Dizeres dos Padres do Deserto", entre inúmeros outros livros, além de ter sido responsável por criar os nomes dos dias da semana em português, sendo a única língua européia que não dá nome de deuses pagãos para estes dias.


Abaixo, vejam uma das obras deste grande santo, educando os pagãos da região, bem como os cristãos recém-convertidos e que ainda se entregavam a feitiçarias e superstições.



De Correctione Rusticorum
Martinho de Braga – Carta ao Bispo Polémio
Ao digníssimo senhor e para mim muito querido irmão em Cristo, o bispo Polémio, Martinho, bispo.
[1] Recebi de sua santa caridade uma carta na qual me escreve que, para admoestação das gentes rurais, que continuam presas a antigas superstições de pagãos e prestam culto e veneram mais os demónios do que a Deus, te dirigisse por escrito algumas considerações, ao menos um resumo do muito que se poderia dizer, sobre a origem dos ídolos e das suas perversidades. Porém, porque se trata de proporcionar a jeito de exemplo, uma informação que para eles seja pertinente, ainda que breve, começando na criação do mundo, tornou-se-me necessário, em exposição condensada, de ligeiro resumo, abranger a floresta ingente dos momentos do passado e do que então aconteceu e preparar para gente rural alimento em linguagem rústica. Por isso mesmo, com a ajuda de Deus, será este o exórdio da tua pregação:
[2] Desejaríamos, filhos caríssimos, apresentar-vos, em nome do Senhor, algo de que ou nunca ouvistes falar, ou que, se porventura ouvistes, votastes ao esquecimento. Dirigimo-nos, por isso, à vossa caridade a fim de que, quanto vos é proposto para vossa salvação, o escuteis com a devida atenção. É verdade que é largo o desenvolvimento que segue pela via das Sagradas Escrituras, mas, para que retenhais ao menos alguma coisa na memória, dentre muitos ensinamentos confiamo-vos o pouco que se segue.
[3] Depois de, no princípio, ter Deus feito o céu e a terra, fez, naquela morada celeste, criaturas espirituais, isto é, os anjos, para estarem na sua presença e O louvarem. Um de entre eles, que, por ser o primeiro de todos, fora feito arcanjo, ao ver-se em tamanha glória, não prestou honra a Deus, seu criador, mas proclamou-se igual a Ele; foi por causa desta arrogância que, juntamente com outros anjos que lhe deram assentimento, foi derribado daquele assento celestial para o firmamento que fica debaixo do céu; e ele que antes era arcanjo perdeu a luz da sua glória e tornou-se em diabo tenebroso e horrível. De igual modo os outros anjos que lhe tinham dado assentimento foram com ele atirados para fora do céu e, perdendo o esplendor da sua glória, foram transformados em demónios. Porém, os restantes anjos, que se mantiveram submissos a Deus, continuam, na glória da sua claridade, na presença do Senhor, e são chamados anjos santos, enquanto aqueles que, com o seu príncipe Satã, pela sua arrogância foram expulsos, recebem o nome de anjos transviados ou demónios.
[4] Foi, portanto, depois desta queda dos anjos, que aprouve a Deus plasmar o homem do limo da terra; pô-lo no Paraíso e disse-lhe que, se observasse o preceito do Senhor, passaria, sem morrer, para aquele lugar celestial, de onde os anjos rebeldes tinham caído. Se, porém, transgredisse os mandamentos de Deus, teria morte certa. Vendo, pois, o diabo (ou os seus ministros, os demónios) que o homem tinha sido criado com um fim, que era o de ocupar o seu lugar, no reino de Deus de onde caíra, levado pela inveja, persuadiu o homem a transgredir as ordens de Deus. Por esta ofensa foi o homem expulso do Paraíso para o exílio deste mundo, onde haveria de padecer muitos trabalhos e dores.
[5] Ora, teve o primeiro homem o nome de Adão e sua mulher, que Deus criou da carne dele, recebeu o de Eva. Foi a partir destes dois seres humanos que se propagou o género humano. Esquecidos eles de Deus, seu Criador, praticaram muitos crimes e exasperaram a Deus até à indignação. Por tal motivo, Deus enviou o dilúvio e exterminou-os a todos, excepto a um homem justo, chamado Noé, a quem salvaguardou com seus filhos, para restabelecer o género humano. Ora, desde o primeiro homem, Adão, até ao dilúvio, decorreram dois mil duzentos e quarenta e dois anos.
[6] Após o dilúvio, de novo o género humano foi restabelecido pelos três filhos de Noé, preservados juntamente com suas mulheres. E, corno começasse a crescer a multidão, os homens, esquecendo-se outra vez de Deus criador do mundo, abandonaram o criador e começaram a prestar culto às criaturas. Uns adoravam o sol, outros a lua ou as estrelas, uns o fogo, outros a água profunda ou as fontes de água, julgando que todas estas coisas não tinham sido criadas por Deus para os homens delas se servirem, mas que elas próprias, criadas por si mesmas, eram deuses.
[7] Então o diabo e os seus ministros, os demónios, que tinham sido lançados fora do céu, vendo que os homens, na sua ignorância, haviam abandonado o seu Criador e andavam errantes pelas criaturas, começaram a aparecer-lhes em diversas formas, a falar com eles e a reclamar-lhes que lhes oferecessem sacrifícios no cimo dos montes e nas florestas frondosas e lhes prestassem culto como a Deus, disfarçando-se com nomes de homens criminosos, que tinham passado a sua vida em toda a sorte de crimes e delitos, de tal modo que um se dizia Júpiter, o qual tinha sido mago e tinha cometido tantos incestos que tivera por sua esposa a própria irmã, que se dizia Juno, violou as suas filhas, Minerva e Vénus, e, na sua torpeza, cometeu também incestos com netas e com todos os seus aparentados, enquanto que outro demónio se deu o nome de Marte e foi instigador de litígios e de discórdia. De seguida, outro demónio quis tomar para si o nome de Mercúrio, o qual foi um inventor astucioso, em tudo o que era de furto e de fraude; a este, qual deus do lucro, os homens gananciosos ao passarem pelas encruzilhadas, atiram pedradas e oferecem-lhe montões de pedras em sacrifício. Outro demónio ainda aplicou a si próprio o nome de Saturno, o qual, vivendo de todo o género de crueldades, devorava até os seus filhos logo ao nascerem. Outro demónio fingiu também que era Vénus, que tinha sido uma meretriz que não só se prostituiu com um sem número de homens, mas também com Júpiter, seu pai, e com Marte, seu irmão.
[8] Aí está quem foram, naquele tempo, esses homens desgraçados, aos quais, por seus expedientes mais que perniciosos, homens ignorantes dos campos honraram e cujos nomes, pois, os demónios se puseram a si próprios para lhes prestarem culto, como se fossem deuses, e imitarem as acções daqueles cujos nomes invocavam. Persuadiram-nos também os demónios a construírem-lhes templos, a colocarem aí imagens ou estátuas de homens criminosos e a levantarem-lhes altares onde lhes derramassem sangue não só de animais, mas até de seres humanos. Além disso, aliás, muitos demónios dos que foram expulsos do céu figuram como patronos, seja no mar seja nos rios seja nas fontes seja nas florestas, e há homens que, na sua ignorância de Deus, de modo semelhante, lhes prestam culto, como se fossem deuses e lhes oferecem sacrifícios. No mar, realmente, dão-lhes o nome de Neptuno, nos rios o de Lâmias nas fontes o de Ninfas, nos bosques o de Dianas, que tudo são demónios malignos e espíritos nefandos. São eles quem faz mal e atormenta os homens sem fé, que não sabem munir-se do sinal da cruz. Todavia, não lhes fazem mal sem permissão de Deus, porque Deus está irado com eles. E eles não crêem na fé de Cristo com todo o coração, mas vivem de tal forma equivocados que até para cada dia da semana invocam nomes de demónios, chamando-lhes dia de Marte, de Mercúrio, de Júpiter, de Vénus, de Saturno, que nunca fizeram dia algum, mas foram homens muito maus e criminosos entre as gentes dos Gregos.
[9] Ora, foi Deus omnipotente, quando fez o céu e a terra, quem criou então a luz; e foi para diferenciar as obras de Deus que esta foi posta a perfazer sete revoluções. De facto, na primeira, fez Deus a luz, que recebeu o nome de dia; na segunda, foi feito o firmamento do céu; na terceira, a terra foi separada do mar; na quarta, foram feitos o sol, a lua e as estrelas; na quinta, os quadrúpedes, os voláteis e os animais aquáticos; na sexta, foi plasmado o homem; ao sétimo dia, porém, depois de completado o mundo todo e o seu ornamento, deu-lhe Deus o nome de descanso. Uma Única e mesma luz, pois, que foi a primeira a ser criada nas obras de Deus, ao fazer a revolução sete vezes, para diferenciar as obras de Deus, recebeu o nome de se(pti)mana. Que loucura é, pois, essa que um homem baptizado na fé de Cristo não cultua o dia de domingo, em que Cristo ressuscitou, e afirma cultuar o dia de Júpiter, de Mercúrio, de Vénus e de Saturno, que não são senhores de qualquer dia, antes foram adúlteros, magos e iníquos e morreram com má reputação na sua pátria? Pelo contrário, como dissemos, sob o disfarce desses nomes é prestada honra e veneração a demónios, por homens estultos.
[10] De igual modo, um outro embuste se intrometeu em homens ignorantes dos campos para pensarem que o início do ano são as calendas de Janeiro, o que é uma falsidade total e completa. Na verdade, segundo diz a Escritura santa, o início do primeiro ano ocorreu a oito das calendas de Abril no equinócio. Assim, com efeito, se lê: e fez Deus a divisão entre a luz e as trevas. Ora, toda a divisão perfeita pressupõe igualdade, tal como acontece a oito das calendas de Abril em que o dia tem tantas horas como a noite. E por isso é falso que o começo do ano sejam as calendas de Janeiro.
[11] Já agora, que há que dizer, não sem mágoa, de um estultíssimo erro que leva a observarem os dias das lagartas e dos ratos e, se é que é permitido dizê-lo, leva um homem cristão a venerar ratos e lagartas em vez de Deus? Se com o resguardo de uma cuba ou de uma gaveta, não se lhes subtrai um pão ou um pano, de forma alguma, por lhes serem dedicados uns dias de festa, eles pouparão o que encontrarem. Sem razão, aliás, arranja esse pobre homem tais prognósticos, como o de que, por no começo do ano ter em tudo fartura e prosperidade, assim também lhe tocará todo o ano. Todas essas observâncias dos pagãos são maquinadas por estratagemas dos demónios. Mas ai daquele homem a quem Deus não for favorável e não houver dado abastança de pão e segurança de vida! Eis que estas vãs superstições vós as praticais quer às ocultas quer às claras. E nunca cessais de fazer estes sacrifícios dos demónios. Então, porque não vos proporcionam que tenhais sempre fartura, segurança e prosperidade? Porque é que, quando Deus se indigna, esses sacrifícios são inúteis para vos defenderem de gafanhotos, ratos e outras muitas atribulações que Deus vos manda na sua indignação?
[12] Não está claro para a vossa compreensão que os demónios vos mentem nessas vossas observâncias que em vão praticais e que vos enganam com os augúrios a que prestais atenção com tanta frequência? Na verdade, como diz Salomão em sua grande sabedoria: adivinhações e augúrios são coisas vãs; e quanto mais andar inquieto o homem com elas, tanto mais vive no engano o seu coração. Não lances neles o teu coração porque arruinaram a muitos. Eis que é a Escritura Sagrada que o diz, e é bem verdade assim, pois que os demónios tantas vezes persuadem os homens na sua infelicidade através do piar das aves que, por coisas frívolas e vãs perdem a fé de Cristo, e, sem se aperceberem, caem no abismo da sua morte. Não mandou Deus que o homem conhecesse o futuro, mas que, vivendo sempre no seu temor, esperasse d ‘Ele orientação e auxílio para a sua vida. Só a Deus pertence saber algo antes que isso aconteça; aos homens insensatos, porém, os demónios enganam-nos com diversos argumentos até os levarem a ofender a Deus e arrastarem consigo as almas deles para o inferno, como desde o início fizeram por inveja da sua parte, para o homem não entrar no reino dos céus, do qual eles foram expulsos.
[13] Foi também por esta razão que, quando Deus viu os homens na sua infelicidade de tal modo enganados pelo diabo e seus anjos maus que, esquecidos do seu Criador adoravam os demónios por Deus, enviou Ele o seu Filho, isto é, a sua Sabedoria e o seu Verbo, a fim de os retirar do engano diabólico para o culto do verdadeiro Deus. E como a divindade do Filho de Deus não podia ser vista pelos homens, tomou carne humana do seio da Virgem Maria, concebida não da união com um homem, mas do Espírito Santo. Tendo, pois, o Filho de Deus nascido em carne humana, escondendo por dentro a Deus invisível, enquanto por fora ficava visível o homem, pregou aos homens; ensinou-lhes que abandonassem os ídolos e as obras más, saíssem do poder do diabo e voltassem ao culto do seu Criador. Depois de ter completado o seu ensino, quis deixar-se morrer pelo género humano. Sofreu a morte voluntariamente, sem ser forçado; foi crucificado pelos judeus, a julgamento de Pôncio Pilatos, que, sendo originário do Ponto, naquela altura estava à frente da província da Síria; deposto da cruz, foi colocado num sepulcro; ao terceiro dia ressuscitou vivo dos mortos e durante quarenta dias conviveu com os seus doze discípulos, e, para demonstrar bem que era verdadeira a carne que tinha ressuscitado, comeu perante os seus discípulos depois da ressurreição. Passados, porém, quarenta dias, ordenou aos seus discípulos que anunciassem a todos os povos a ressurreição do Filho de Deus e os baptizassem em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, para remissão dos pecados, e ensinassem os que tivessem sido baptizados a afastarem-se das más acções, i.e., dos ídolos, de homicídio, de furtos, de perjúrio, de fornicação, e que aquilo que não queriam que lhes fizessem a eles não o fizessem aos outros. E depois de ter ensinado isto, à vista dos seus discípulos, subiu ao céu e aí está à direita do Pai, e daí, no final deste mundo, há-de vir com a mesma carne que levou consigo para o céu.
[14] Quando, porém, vier o fim deste mundo, todos os povos e todo o homem cuja origem procede dos primeiros seres humanos, isto é, de Adão e Eva, todos ressuscitarão tanto bons como maus; e todos hão de vir ante o tribunal de Cristo. E, nessa altura, aqueles que durante a sua vida foram bons fiéis serão separados dos maus e entrarão no reino de Deus com os santos anjos. E as almas deles ficarão, com a sua carne, no descanso eterno, para não morrerem mais. Aí já não haverá para eles nem fadiga nem dor nem tristeza, não haverá fome ou sede, nem calor ou frio, nem trevas ou noite, mas, viverão sempre na alegria e na abundância. Em luz e glória, serão semelhantes aos anjos de Deus, pois mereceram ter entrada naquele lugar de onde caiu o diabo com os anjos que a ele deram assentimento. Aí, pois, permanecem eternamente todos aqueles que ficaram fiéis a Deus. Com efeito, os que não tiveram fé ou os que não foram baptizados, ou por outro lado os que, tendo-o sido realmente, depois do baptismo de novo voltaram aos ídolos e a homicídios, ou a adultérios e augúrios ou a perjúrios e outras más acções e morreram sem penitência, todos os que assim forem encontrados serão condenados com o diabo, e com todos os demónios a quem cultuaram e cujas obras fizeram, e são metidos, com a sua carne, em fogo eterno, no inferno, onde um braseiro inextinguível está perpetuamente vivo e onde essa carne, já recebida da ressurreição, por entre gemidos, é atormentada eternamente. Deseja morrer de novo, para não sentir os castigos, mas não é permitido morrer, a fim de sofrer torturas eternas. Eis o que diz a lei, o que dizem os profetas, o que o Evangelho de Cristo, o que o Apóstolo e o que a Escritura Santa toda atestam, e é isto que nós agora vos resumimos ao mínimo e com termos simples. A vós, filhos caríssimos, a partir daqui pertence recordar o que por nós acaba de ser dito e, ou, agindo bem, esperar o repouso futuro no reino dos céus, ou (que isso não aconteça!), agindo mal, aguardar que haverá um fogo perpétuo. Com efeito, quer a vida eterna, quer a morte eterna são deixados ao arbítrio do homem. O que cada um escolher para si próprio, isso terá.
[15] Vós, pois, homens crentes, que tivestes acesso ao baptismo, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, considerai que pacto fizestes com Deus nesse mesmo baptismo. Com efeito, quando cada um de vós deu o nome junto das fontes, por exemplo, Pedro ou João ou qualquer outro nome, foi-vos perguntado assim pelo sacerdote: «Como te chamas?» Respondeste ou tu, se já podias responder, ou, ao menos quem por ti testemunhou, quem estava a acolher-te da fonte, dizendo: «Chama-se João». E perguntou o sacerdote: «João, renuncias ao diabo e aos seus anjos, aos seus cultos e ídolos, a roubar e a enganar que são coisas dele, à fornicação e à embriaguez que vêm dele, e a todas as suas obras más?» E respondeste: «Renuncio». Depois desta renúncia ao diabo, de novo foste interrogado pelo sacerdote: «Crês em Deus Pai omnipotente?» respondeste: «Creio». «E em Jesus Cristo, seu único Filho, Senhor nosso, que nasceu, pelo Espírito Santo, da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado e sepultado, ao terceiro dia ressuscitou vivo dos mortos, subiu aos céus, está sentado à direita do Pai de onde há-de vir julgar os vivos e os mortos, crês?» E respondeste: «Creio». E de novo te foi perguntado: «Crês no Espírito Santo, na santa Igreja Católica, na remissão de todos os pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna?» E respondeste: «Creio». Eis, pois! Tende em conta que pacto fizestes com Deus no baptismo: prometestes renunciar ao diabo e aos seus anjos e a todas as suas obras más, e confessastes que acreditáveis no Pai e no Filho e no Espírito Santo e que esperáveis no fim dos séculos a ressurreição e a vida eterna.
[16] Eis qual o vosso penhor e confissão que se guarda junto de Deus! Como é que alguns de vós, que renunciaram ao demónio e aos seus anjos, e aos seus cultos e às suas obras más, agora voltam ao culto do diabo? Pois acender velinhas a pedras, a árvores e a fontes e pelas encruzilhadas, o que é isso senão culto ao diabo? Observar adivinhações, augúrios e dias dos ídolos, que outra coisa é senão cultuar o diabo? Observar Vulcanálias e Calendas, ornar mesas, pôr louros, fazer observância do pé e derramar grãos e vinho no fogo, sobre um tronco, ou atirar com pão para a fonte, que outra coisa é senão culto do diabo? As mulheres invocarem Minerva no tear, e observarem o dia de Vénus para o casamento, e atenderem ao dia em que se sai para viajar, que outra coisa é senão culto do diabo? Fazer encantamentos de ervas para malefícios e invocar os nomes dos demónios com encantamentos, que outra coisa é senão culto ao diabo? E há muito mais que seria demorado enumerar. Eis que tudo isto fazeis depois de renúncia ao diabo, após o baptismo, e, tornando ao culto dos demónios e às más acções da idolatria, já violastes a vossa fé e já rompestes com o pacto que fizestes com Deus. Deixastes de lado o sinal da cruz que recebestes no baptismo e apegais-vos a outros sinais do diabo, por aves e espirros e muitas outras coisas. Porque é que a mim, ou a qualquer outro cristão praticante, não faz mal um augúrio? Porque, onde tiver primazia o sinal da cruz, o sinal do diabo não é nada. Porque vos faz mal a vós? Porque desprezais o sinal da cruz e receais aquilo que vós próprios preparastes como sinal. Do mesmo modo pusestes de lado o encantamento sagrado que é o símbolo que no baptismo recebestes e que é Creio em Deus Pai omnipotente e a oração dominical, i. é, Pai nosso que estás nos céus, e atendes-vos a encantamentos e ensalmos do diabo. Quem quer que despreze o sinal da cruz de Cristo e volte a olhar para esses sinais, já perdeu o sinal da cruz que recebeu no baptismo. O mesmo se passa com aquele que se atém a outros sortilégios congeminados por magos e homens de mal; ao sortilégio do símbolo santo e da oração dominical que recebeu com a fé de Cristo, já o perdeu e calcou aos pés a fé de Cristo, pois não se pode cultuar ao mesmo tempo a Deus a ao diabo.
[17] Se, pois, filhos muito amados, compreendestes tudo isto que vos acabamos de dizer, se alguém reconhece que, depois de recebido o baptismo, fez estas coisas e rompeu com a fé de Cristo, não desespere de si nem diga no seu coração: «Como fiz tantas coisas más depois do baptismo, talvez Deus não me perdoe os meus pecados». Não duvides da misericórdia de Deus. Basta que tu, no teu coração, faças com Deus um pacto de nunca mais cultuar o que é próprio do demónio e não adorar nada a não ser o Deus do céu nem cometer homicídio nem adultério ou fornicação, não praticar furto e não fazer perjúrios. E quando tu de todo o coração prometeres isto a Deus e daí em diante não cometeres estes pecados, espera confiadamente o perdão de Deus, pois assim disse o Senhor pelo texto do Profeta: qualquer que seja o dia em que o pecador esquecer as suas iniquidades e praticar a justiça, também eu esquecerei todas as suas iniquidades. Deus, pois, espera por penitência. Esta é, porém, a verdadeira penitência: que o homem nunca mais cometa os erros que cometeu, mas peça indulgência para os pecados anteriores e se acautele quanto ao futuro para não voltar de novo a eles, mas, antes, pelo contrário, pratique boas obras e dê esmola aos pobres, restaure as forças ao estranho cansado e tudo quanto gostaria que lhe fosse feito a ele por outro ele o faça a outrem e o que não gostaria que lhe fizessem a ele não o faça a outrem, porque nesta palavra se cumprem os mandamentos de Deus.
[18] Por isso vos rogamos, irmãos muito queridos, que retenhais na memória estes preceitos que Deus, por nós, humílimos e exíguos, se digna dar-vos e penseis como haveis de salvar as vossas almas, de tal modo que não trateis unicamente das coisas transitórias, ainda que úteis, deste mundo, mas antes recordeis aquilo em que no símbolo prometestes acreditar, isto é, na ressurreição da carne e na vida eterna. Se, pois, acreditastes e continuais a acreditar que haverá ressurreição da carne e vida eterna no reino dos céus entre os anjos de Deus, como já acima vos dissemos, pensai o mais que puderdes nisso e não sempre na miséria do mundo. Preparai o vosso caminho com boas acções. Sede assíduos a orar a Deus, na igreja ou em locais dedicados aos santos. O dia do Senhor, que, por isso mesmo se chama domingo, dado que o Filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, nele ressuscitou dos mortos, não o desrespeiteis mas cultuai-o com reverência. Trabalho servil, i. é, cuidar do campo, do prado, da vinha, ao menos enquanto se trata de trabalho pesado, não o façais em dia de domingo, exceptuando apenas o que respeita aos afazeres da cozinha para satisfazer as necessidades do corpo e a necessidade de uma longa viagem. No dia do Senhor é permitido ir a sítios próximos, mas não para ocasiões de pecado, antes de boas acções, como seja, ir a locais santos, visitar um irmão ou amigo, assistir um doente ou levar um bom conselho a um atribulado ou ajuda para boa causa. É assim, pois, que convém que o homem cristão venere o dia do Senhor. Na verdade seria por demais iníquo e vergonhoso que aqueles que são pagãos e ignoram a fé de Cristo, porque prestam culto aos ídolos dos demónios, cultuem o dia de Júpiter ou de qualquer outro demónio, e se abstenham de trabalhos quando é sabido que nunca os demónios criaram qualquer dia ou ele lhes pertence e nós, que adoramos o verdadeiro Deus e cremos que o Filho de Deus ressuscitou dos mortos, quanto ao dia da sua ressurreição, ou seja, o domingo, não o respeitássemos minimamente! Não façais, pois, injúria à ressurreição do Senhor, mas homai-a e cultuai-a com reverência, pela esperança que temos relativamente a ela. Na verdade, assim como Ele, Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que é a nossa cabeça, ao terceiro dia ressuscitou dos mortos na sua carne, assim também nós, que somos seus membros, esperamos vir a ressuscitar na nossa carne, no fim do mundo, a fim de cada qual receber ou o descanso eterno ou a pena eterna; consoante procedeu com o seu corpo neste século, assim receba.
[19] Eis como nós, tomando como testemunhas a Deus e os santos anjos que nos ouvem, pelo uso que agora fazemos da palavra, satisfazemos a nossa dívida para com a vossa caridade, e como, da riqueza do Senhor, tal como nos está preceituado, vos fazemos penhor. Cabe-vos a vós agora pensar e procurar como cada um a quanto recebeu irá apresentá-lo com juros quando o Senhor vier no dia de juízo. Rogamos, pois, à clemência do Senhor, que vos proteja de todo o mal e vos faça dignos companheiros dos seus santos anjos, no seu reino. Isso vos conceda Aquele que vive e reina pelos séculos dos séculos. Ámen.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A Alma Portuguesa

A Alma Portuguesa

Autoria: Padre Andrew Phillips

Tradução: Fabio Lins

As Nações dos homens existem pelo que há de melhor no homem, e são destruídas pelo que há de demoníaco nele.

John Masefield, Gallipoli

Toda terra passa por períodos de grandeza e períodos de declínio. Os períodos de grandeza expressam o entusiasmo da terra e seu povo por algum ideal e insight espirituais, por alguma grande idéia. Nestes momentos a essência espiritual de um país, a alma de seu povo, se torna aparente. Períodos de declínio expressam a traição e a perda desse ideal em favor de uma atração fatal e decadente por uma paixão mundana por riquezas terrenas, terra e poder, e obscurecimento daquela alma nacional e sua essência espiritual. Deste modo muitos grandes impérios, tanto antigos quanto novos, ergueram-se e caíram, seja o Babilônio, o Egípcio, o Macedônio, o Romano Ocidental, o Persa, o Romano Oriental, o Zimbabwense, o Mongol, o Asteca, o Inca, o Português, o Espanhol, o Mogol, o Chinês, o Otomano, o Austro-Húngaro, o Francês, o Britânico ou o Soviético. Iremos aqui analisar a grande idéia e o ideal espiritual que flamejava na alma de Portugal e seu povo.

O primeiro período da história de Portugal, o período Ortodoxo, começa antes mesmo de Portugal como o conhecemos hoje existisse, com a missão de São Tiago Apóstolo, filho de Zebedeu e irmão de São João, aos habitantes romanizados da Península Ibérica. Até hoje sua memória é lembrada na Galícia, ao norte das atuais fronteiras de Portugal, na grande cidade de peregrinação de São Tiago - Santiago de Compostela, na qual suas santas relíquias ainda são veneradas. Tal era a fama deste lucar que em 1049 o Bispo de Compostela foi excomungado pelo recém-reformado papado por dizer a verdade: que ele também, como o Bispo de Roma, era bispo de uma Sé Apostólica. Embora hoje Santiago esteja fora das fronteiras portuguesas na Galícia – que fala um dialeto próximo ao português – a peregrinação à cidade do Santo Apóstolo Tiago marcou, como veremos, a alma portuguesa por toda a sua história.

O primeiro santo da Lusitânia e da Galícia, como Portugal era então conhecido, é do primeiro século. Trata-se de S. Basílio (23 de maio), o primeiro Bispo de Braga, aquela cidade no norte de Portugal que se tornou o coração espiritual do país, dando origem ao ditado português, “tão velho como a sé de Braga”. A ele seguiram os mártires S. Paulo, Heracleus, Secondilla e Januarius do Porto (02 de março). S. Veríssimo, Máxima e Júlia de Lisboa (01 de outubro) foram todos martirizados por volta do ano 300, e S. Vítor de Braga (12 de abril) foi batizado em seu próprio sangue recusando-se a adorar os ídolos em 303.

No quinto século, depois da invasão da Península Ibérica pelas tribos germânicas dos Suevos e dos Visigodod que adotaram o arianismo, outro mártir viria a adornar a Igreja Portuguesa: S.Pedro, Arcebispo de Braga (26 de abril). E ainda S. Mancius, Bispo de Évora (15 de março) também foi martirizado no século V d.C. . Depois destes veio o grande santo português e pai monástico, S. Martinho, Arcebispo de Braga (579), comemorado no dia 20 de março e conhecido como Apóstolo da Galícia, que converteu o rei dos suevos do arianismo para a Ortodoxia e que, junto com seus discípulo Pascanius, traduziu os Ditos dos Padres do Deserto do grego. E não podemos deixar de mencionar o nome de um outro grande pai monástico, S. Frutuoso de Braga (665), comemorado no dia 16 de abril, o qual, iluminando os visigodos, escreveu uma regra monástica. Deste período existem ainda as igrejas do século sétimo de S. Frutuoso em Montélios, perto de Braga, construída para as relíquias de S. Frutuoso na forma de uma cruz grega e de S. Pedro em Balsamão e de Santo Amaro em Beja.

Este primeiro período da história e de prosperidade espiritual portuguesa terminou em 711 com a invasão dos mouros vindos do norte da África. Eles iriam tomar a maior parte da Península Ibérica e mesmo ameaçarem os povos vivendo no território do sul da França, onde foram detidos apenas na Batalha de Poitiers em 732. É desta época que vem a famosa lenda ibérica de sete bispos que fugiram através do Atlântico para “Antilia”, a Ilha de Sete Cidades, uma lenda que iria assombrar a consciência portuguesa, como veremos, por muitos séculos. As invasões mouras provocaram um movimento de resistência cristão nos séculos 9 e 10, que lutavam para libertar o norte e o centro da Portugal atual do jugo muçulmano. Dois santos destacam-se neste período: S. Rosendus de Dume (967), santo bispo e restaurador do monasticismo na Galícia, celebrado no dia 01 de março, e sua parente, a santa abadessa Senhorinha de Basto (982), celebrada no dia 22 de abril. A época também pertencem as outras únicas igrejas Pré-Romanescas, ou Ortodoxas, de Portugal, em Lourosa, fundada em 913.

Este segundo período da história portuguesa, o do Jugo Muçulmano, começa então em 711 e irá durar na maior parte do centro de Portugal até 1064. Foi neste ano que uma reconquista iniciou-se do norte, da região livre do Porto, a qual em 1139 iria determinar as fronteiras de um novo estado independente de nome inspirado em si – Portugal. Esta Reconquista não estaria completa até o século XIII no sul de Portugal, onde a presença árabe ainda é muito lembrada pelos nomes de muitos lugares, como ‘Algarve’, o qual em árabe significa ‘o ocidente’.

Gradualmente então, depois de 600 anos, o Jugo Muçulmano fora rechaçado. Mas depois disto Portugal teria que enfrentar uma nova tragédia, pois a Reconquista de 1064 fora patrocinada por uma nova ideologia estrangeira – o Catolicismo Romano. Por volta de 1080 esta ideologia, desenvolvida pelo agressivo Papa Hildebrando e utilizando influência francesa, já havia quase que completamente suprimido o muito amado rito litúrgico Moçárabe ou Hispânico que havia conservado a antiga liturgia romana e ocidental dos primeiros séculos. Em torno de 1147, quando Lisboa finalmente foi retomada dos mouros, estava claro que a conquista litúrgica de Portugal e de toda Ibéria estava completa: a antiga espiritualidade Ortodoxa Romana-Moçárabe dos primeiros dez séculos de histórica ibérica havia desaparecido. A era do Jugo Muçulmano havia acabado, mas também a era de grandeza espiritual portuguesa. Esta fora substituída por uma nova ideologia papal disseminada por uma elite na França, uma ideologia que se tornou cada vez mais forte ao longo da Idade Média. Os fiéis portugueses se encontravam privados da fé de seus ancestrais, naquele estado de privação espiritual que tem sido a amarga herança e doença da Europa Ocidental durante todos estes longos anos desde o século XI.

No século XIII, portanto, a alma e a história de Portugal haviam sido capturadas por uma nova ideologia e surgia no povo português uma saudade por um Espírito Santo ausente, por um Paraíso perdido que seus ancestrais haviam conhecido. Assim, com o fim do Jugu Muçulmano, inciou-se o terceiro período da história portuguesa, e que atingiu seu apogeu nos séculos XV e XVI. Este é o período dos grandes exploradores, como Henrique, o Navegador, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Alfonso de Albuquerque, Pedro Álvares Cabral e Fernão Magalhães, quando a influência portuguesa se espalhava não apenas da África ao Brasil, mas também até a China e o Japão. Este período de grandes descobertas iria terminar no século XVI quando Portugal inicia seu súbito e enigmático declínio, o quarto de sua história. O enigma do quarto período, seu declínio, só pode ser compreendido em contraste com o seu terceiro período, o de grandeza mundana. O que é que movera os exploradores portugueses e mesmo não-portugueses envoltos neste mesmo espírito, a navegar de Portugal em busca do desconhecido e assim lançar os fundamentos de um império colonial? Para compreender o espírito destes exploradores e porque partiram, não podemos fazer melhor senão observarmos o mais famoso exemplo, o de um não-português, que partiu com apoio espanhol: Cristóvão Colombo.

Nascido em 1451 em Gênova mas quase certamente de origens ibero-judaicas, Colombo ou Colón como preferia ser chamado, conhecia o Mediterrâneo muito bem como marinheiro e era um reconhecido cartógrafo. Com a idade de 25, iniciou morada em Portugal, casou-se com uma portuguesa e viveu por algum tempo na recém-descoberta ilha de Madeira, em cujas praias ele comumente encontrava plantas e madeiras que vinham flutuando de algum país misterioso ao oeste. De Madeira e Portugal ele navegou para África, Inglaterra, onde os navegantes lhe falavam de Newfoundland e para Irlanda e Islândia, onde mais uma vez ouvia falar de terras ao oeste. De 1480 em diante, Colombo torna-se fascinado pela idéia de explorar o oeste, convencendo-se que não apenas encontraria uma nova terra, mas um Novo Mundo, a Jerusalém Terrena. De caráter instável, às vezes beirando a insanidade, este homem de origem judaica, se sentia escolhido por Deus como Messias para a missão de descobrir um Novo Mundo. Nisto ele era guiado por uma profecia do Livro de Isaías (11:10-12), que diz:

“Naquele dia a raiz de Jessé será posta por estandarte dos povos, à qual recorrerão as nações; gloriosas lhe serão as suas moradas.

Naquele dia o Senhor tornará a estender a sua mão para adquirir outra vez e resto do seu povo, que for deixado, da Assíria, do Egito, de Patros, da Etiópia, de Elão, de Sinar, de Hamate, e das ilhas de mar.

Levantará um pendão entre as nações e ajuntará os desterrados de Israel, e es dispersos de Judá congregará desde os quatro confins da terra.”

Colombo foi ainda inspirado por muitos escritos e tradições, algumas das quais vinham da Grécia Antiga. Além das mais antigas, havia a bem conhecida lenda do sexto século da vida do irlandês S. Brandão, o Navegador, que havia navegado para uma terra além do Atântico, uma entrada para o Paraíso terrestre. Esta terra era chamada “Brasil”, significando em Gaélico “grande ilha”. Em segundo lugar, Colombo conhecia bem de Portugal a história de Antilia, a Ilha das Sete Cidades, para onde haviam fugido sete bispos depois da invasão dos mouros em 711. Por fim, havia o fato de quem em 1492 ( o simbólico ano de 7000 desde a Criação do Mundo, e que Colombo entendia literal e não simbolicamente), a Reconquista da Península Ibérica tinha se completado e muitos desejavam levar a Reconquista além tomando Jerusalém e assim iniciar o oitavo e último milênio no qual o mundo iria acabar.

De fato, no ano de 1492, o primeiro ano do oitavo milênio, Colombo partiu para encontrar o “Novo Mundo”, descobrindo o que hoje chamamos de Índias Ocidentais. Em 1493-4 ele retornou ao local com sete navios e mais de mil colonistas. Colombo estava convecido de que havia encontrado naquelas ilhas não apenas “Antilia”, a Ilha das Sete Cidades, mas também ‘Cipango’ (Japão) e Índia.

Foi por causa destes erros que o nome de “Índias Ocidentais” foi dado a estas ilhas e que o nome “índios” foi usado para todos os habitantes das Américas e que as Índias Ocidentais também eram conhecidas como Antilhas. Em uma terceira expedição, em 1498, Colombo descobriu a América do Sul. Tendo encontrado um enorme golfo de água doce na boca do Orinoco, ele decidiu que este seria um dos quatro rios que fluem do Paraíso, como descrito no Gênese, capítulo 02:

10. Um rio saía do Éden para regar o jardim, e dividia-se em seguida em quatro braços: 11. O nome do primeiro é Fison, e é aquele que contorna toda a região de Evilat, onde se encontra o ouro. 12. O ouro dessa região é puro;”

Retornando a Espanha, de 1500 em diante Colombo se tornou mais e mais obcecado em encontrar este Paraíso, a Jerusalém terrena, a cuja descoberta seguir-se-ia o fim do mundo. Em 1502, ele partiu em uma quarta expedição, buscando a não-existente passagem através do que é hoje o Panamá para o que haveria depois – o Paraíso. Em 1504 Colombo iria retornar, exausto e amargamente decepcionado, sem ter encontrado o tal Paraíso. Os colonizdores que viajaram com ele revoltaram-se contra o navegador, por não terem encontrado ouro o suficiente, trucidando e explorando os povos indígenas primitivos. Colombo não viveu à altura de seu nome: Cristóforo Colón – O Colonizador Portador de Cristo.

Mesmo sem que ele mesmo tenha nascido em Portugal, Colombo ilustra bem a tragédia histórica de Portugal, o resultado de inúmeros fatores específicos. Primeiramente, como resultado da perda de sua fé Ortodoxa, Portugal perdeu o Espírito Santo, o Espírito que havia sido trazido ao território português por S. Tiago, o Apóstolo. Em segundo lugar, Portugal teve suas ambições frustradas por séculos pelo Jugo Muçulmano. E em terceiro lugar, sua posição geográfica era tal na extremidade da Europa que Portugal sempre contemplava com curiosidade o sol poente através do misterioso Oceano Atlântico, fonte de tantas lendas.

E não menor entre estas lendas é a de que a Antiga Fé de Portugal poderia ser ainda encontrada além-mar, entre os sete bispos da Ilha das Sete Cidades. A idéia nacional e o ideal espiritual da alma de Portugal, uma alma peregrina desde a época de São Tiago Apóstolo, chegou a fruir no século XV quando partiram em na jornada pelo Espírito Santo, por Jerusalém, pelo Paraíso. No entanto, privados da orientação espiritual e sem guias, confundiu o terreno e o celestial, e os que partiram não encontraram o Paraíso, mas ouro, poder e as terras de povos primitivos. Não encontraram Jerusalém, mas a Babilônia, encontraram não um Império da alma, tal como S. Martinho de Braga uma vez lhes descrevera, mas um Império da terra.

Apenas este veneno pode explicar porque, depois de dois séculos de explorações heróicas entre 1384 e 1580, Portugal entrou em rápido declínio. Portugal não encontrou o Espírito Santo, mas ouro, poder e território; encontrou não o espiritual, mas o material e assim esqueceu e abandonou sua alma peregrina, traindo sua essência e ideal espirituais, sua peregrinação celestial, tornando-se apenas um agregado material. Portugal deixou de se desenvolver, deixou de trabalhar a si mesmo, perdendo seu grande ideal, seu destino espiritual e seu insight e decaiu, tornando-se uma nação esquecida pela Europa.

E hoje, tudo isso é lembrado não apenas pela palavra portuguesa ‘saudade’, que significa um desejar nostálgico e um anseio triste de um povo cuja alma peregrina está capturada entre o céu e a terra sem o Espírito Santo, mas também no lamento melancólico e assombrado da música tradicional portuguesa, o ‘fado’. E ainda assim temos certeza que quando a alma Portuguesa despertar para sua Antiga Fé, então grande será a festa de seus peregrinos ao reencontrar a fé de S. Tiago Apóstolo e dos sete bispos da Ilha das Sete Cidades.

Todos os santos da Terra Portuguesa, orem a Deus por nós!

Original aqui.