terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Obstáculos para tornar-se Ortodoxo

Introdução

Não é incomum ouvir alguém dizendo que "se tornou ortodoxo", sendo que o a pessoa quer dizer é que passou a "fazer parte da Igreja Ortodoxa". Pois uma coisa é fazer parte da Igreja, se tornar formalmente um membro do Corpo de Cristo, mas é bem outra nos tornarmos interiormente ortodoxos, isto é, entrar profunda e verdadeiramente no espírito e modo de vida da Igreja. A maioria do clero ortodoxo não recebe as pessoas na Igreja muito rapidamente e sem um catecismo adequado, mas ainda assim deixa-se passar alguma coisa. Ao longo dos anos, por exemplo, nós vimos dúzias de pessoas se juntando à Igreja mas nunca tornarem-se ortodoxas, como pode ser confirmado por seu abandono, ou fundação de seitas, cismas, cultos ou grupos para-eclesiásticos. Além disso, já vimos acontecer isto, tragicamente, mesmo depois de décadas de participação formal na Igreja.

Não se trata apenas de quantos ingleses(*) mais tarde abandonam a Igreja Ortodoxa, passado o entusiasmo inicial, mas também de russos, gregos e outros. Assim, por exemplo, sabemos de um russo de segunda geração que mais de trinta anos atrás foi circuncidado e tornou-se judeu. Sabemos também de um professor russo de primeira geração que batizou seus filhos na igreja anglicana, pois, como ele disse, "estamos na Inglaterra agora". Por outro lado, pelo menos seis dos sacerdotes da diocese anglicana de Londres são cipriotas gregos. Tendo nascido e sido criados na Inglaterra, eles decidiram há muito que a Ortodoxia era apenas para os gregos, e já que eles eram ingleses agora, eles tinham que se tornar anglicanos. Incontáveis outros exemplos de apostasia poderiam ser citados, incluindo os russos de segunda e terceira geração na França que se tornaram católicos romanos.

Quais são, então, os obstáculos para se tornar ortodoxo no verdadeiro sentido da palavra? O que pode dar errado? Para descobrir isso, temos que analisar primeiro a questão sob a luz das quatro características da Igreja, conforme definidas em nosso Credo. Ali, a Igreja é definida como "Una, Santa, Católica e Apostólica". É nesta luz que encontraremos as respostas para nossas perguntas.

Intelectualismo versus Unidade

A unidade da Igreja é afastada pelo intelectualismo. Este perigo é particularmente forte entre os convertidos dos países ocidentais. O intelectualismo ataca a unidade da Igreja porque toda tendência intelectual é divisiva, criando tanto apoiadores quanto inimigos, que dizem que são de Paulo, de Apolos e de Cefas, mas não de Cristo (I Cor 1, 12). Não devemos esquecer que todos os grandes hereges foram intelectuais, desde os helenos e gnósticos do primeiro século, até Arius e Nestório e os neo-gnósticos modernos e renovacionistas. A influência destes últimos é particularmente forte em países com imigração russa, notavelmente na França e nos EUA, mas também na Bélgica e na Inglaterra.

A tendência intelectualista vem de fora da Igreja, do mundo heterodoxo. Ali é comumente acreditado que a fé só pode ser compreendida pela razão ou pelo intelecto. Esse racionalismo é hostil ao ethos da Igreja, onde acreditamos e sabemos por experiência que o conhecimento não vem da razão humana, mas da purificação do coração. De fato, é apenas quando o coração é purificado, através de práticas ascéticas de oração e jejum e dos sacramentos postos juntos, que a razão ou o intelecto podem ser iluminados. Por outras palavras, na Igreja, o conhecimento vem até nós através da luta contra o pecado e da batalha pela virtude, seguindo os mandamentos, e não através do vão conhecimento de livros. Este último apenas nos deixa cheios de nós mesmos, e torna suas vítimas voluntárias em vaidosos joguetes do demônio, racionalistas pretensiosos que inspiram ou o deboche ou a piedade dos outros.

O intelectualismo divide, porque seus adeptos em seus grupos e panelas trabalham contra a unidade da Igreja de Jesus Cristo que é o mesmo ontem, hoje e para sempre (Hebreus 13:8). A unidade pode ser encontrada apenas na fidelidade à Tradição, o depósito confiado aos santos e que somos chamados a guardar (1 Timóteo 6:20). Nas inovações podemos ter certeza que encontraremos o espírito intelectualista, estranho ao Deus Vivo e Sua Igreja.

Espiritualismo versus Santidade

A santidade da Igreja é afastada pelo espiritualismo. O Espiritualismo confunde o que é autenticamente espiritual com a ilusão emocional do orgulho (ilusão em eslavônico é prelest, em grego plani, em latim illusio). Esta também foi uma das grandes fraquezas da imigração russa, mas hoje também é encontrada no velho calendarismo sectário grego. Este espírito é trazido para a Igreja desde fora, de todos os tipos de teorias mundanas mas "espirituais" e de filosofias estranhas como o antroposofismo e guenonismo, sectarianismo e espírito de culto. Tudo isso forma atrações para esferas desencarnadas do ser, que são habitadas por espíritos malignos (que estão desencarnados), sob a ilusão de que são planos existenciais angélicos e não satânicos.

Talvez, o mais óbvio representante desta escola tenha sido o russo Evgraf Kovalevsy. Entretanto, ele foi apenas o caso mais claro de muitos, dessa doença espiritual, que era particularmente forte entre a imigração russa em Paris, que a havia trazido com eles desde S. Petersburgo. Muitos deles participavam na Igreja, mas eles trouxeram com eles a doença e tentavam disseminá-la na Igreja. Eles não compreendiam que um interesse em "espiritualidade" não é o mesmo que a prática da virtude. Um interesse na "espiritualidade" pode ser muitíssimo perigoso, pois o demônio é um ser espiritual. Isto é especialmente visível em caso de interesse em espiritualidade heterodoxa ou não-cristã, como o "Franciscanismo" (a qual, os santos russos do século XIX repetidamente apontavam, era a própria definição de ilusão espiritual) ou interesse em espiritualidade muçulmana, hindu ou budista.

O espiritualismo, com sua falta de foco desencarnada e neo-gnóstia, pode ser vista materializada na inconografia borrada de muitos representantes da imigração russa em Paris. A falta de clareza e definição em seus ícones assinala seu espírito desencarnado. Isto representa uma falsa santidade, que não é santidade de forma alguma, mas uma falta de habilidade de penetrar o interior da Igreja por causa de uma impureza do espírito.


Filetismo versus Catolicidade

A catolicidade da Igreja é afastada pelo filetismo, palavra baseada na equivalente grega para raça. A palavra poderia ser traduzida como racismo, mas é normalmente expressa como nacionalismo ou etnicismo. É particularmente comum entre os gregos e outros ortodoxos dos Balcãs, que suportaram o fardo Turco e seu sistema de guetos. É por isso que o filetismo foi primeiramente condenado em Constantinopla, no século XIX. Entretanto, os outros ortodoxos não estão de forma alguma imunes ao filetismo e temos visto muitos exemplos na Igreja Russa no Exílio e em outras partes da Igreja Russa. Ainda assim, ironicamente, temos encontrado o filetismo em sua forma mais virulenta entre os ortodoxos que são ex-anglicanos, entre os quais apenas o inglês é utilizado com algumas palavras em línguas estrangeiras incorretamente pronunciadas, e onde se opera uma forma sutil porém dolorosa de racismo anti-grego, anti-romeno ou anti-russo. Um exemplo recente disto é uma exigência de um recém-convertido americano para que se tenha um "patriarca americano". Isto significa alguém de cabelo curto, sem barba, nascido nos EUA e que dá sermões enquanto masca chicletes? O que todos nós precisamos em nossos respectivos países é de patriarcas santos - suas nacionalidades são radicalmente irrelevantes. Se não há santidade, como alguém pode ser salvo? A nacionalidade simplesmente não é um critério.

O filetismo, ou como poderíamos chamá-lo, racismo, exclui os ortodoxos que não pertencem à nacionalidade majoritária de uma igreja em particular. Apenas recentemente, e não longe daqui, encontramos o caso de um grupo que excluía os ortodoxos ingleses de seus ofícios e comunhão porque eles não eram "escuros o suficiente para serem um de nós". Aparentemente, cabelos loiros ou olhos azuis eram equivalentes a excomunhão. Também encontramos um outro caso no qual os não-sérvios eram proibidos de venerar um ícone de São Savas, porque "ele só pode ser venerado por sérvios". Tais casos são frequentes demais para mencionarmos aqui.

O filetismo fala e age contra a catolicidade, isto é, universalidade em todos os tempos e lugares da Igreja. Ele divide racialmente e é contra qualquer solução ao problema canônica da diáspora de múltiplas "jurisdições" ou dioceses em um mesmo território geográfico. A solução para o problema é clara - ela existia na América do Norte antes da Revolução Russa, onde múltiplas nacionalidades estavam unidas em uma diocese comum. Aqueles que quebraram esta unidade terão muito a responder no fim dos tempos.

Esteticismo versus Apostolicidade

A apostolicidade da Igreja é afastada pelo esteticismo. Isso significa que a profundidade do ensino da Igreja, pregado e expresso pelos apóstolos em sua confissão e martírio, é contrariado por uma atitude superficial para com a vida na Igreja. Aqueles que vêm à igreja para acender uma vela fazem bem, enquanto estão ali, mas ficam por apenas alguns minutos. Hoje em dia, este esteticismo é talvez o maior problema de todos, pois este mal do nominalismo afeta a maioria dos ortodoxos batizados. Aqueles que entendem a Igreja como uma peça de teatro, aqueles que vêm para serem comovidos pelo cantico ocidentalizado, ou para venerar ícones ocidentalizados, aqueles que se sentem comovidos pelo aroma do incenso, estão todos deixando de perceber o principal.

O esteticismo vê a igreja como uma experiência emocional que é boa por vinte minutos algumas vezes por ano. Ele não percebe as grandes verdades espirituais, e portanto morais, da Crucificação, Ressurreição e da Redenção. A Igreja existe por causa do sangue dos mártires e dos sofrimentos dos confessores.  Sem sofrimento, não haveria Igreja. A Igreja, Corpo de Cristo, é fundada no Sangue de Cristo, a Eucaristia é fundamentada em Seu Corpo e Sangue. Uma abordagem rasa e superficial da vida na Igreja, típica do nominalismo, não leva a um estilo de vida justo, muito menos santo. E seremos julgados sobre como levamos nossa vida, e não sobre nossas emoções inevitavelmente impuras.

O esteticismo age contra a apostolicidade da Igreja, contradiz a profundeza da experiência espiritual dos apóstolos, que trabalharam e sofreram pelo benefício da humanidade, relembrando que o Chefe dos Apóstolos é o próprio Cristo, enviado pelo Pai para a redenção de toda a humanidade. O esteticismo deixa completamente de lado nosso compromisso vital com as verdades espirituais e morais que todos os ortodoxos são chamados a exemplificar em nossas vidas diárias.

Conclusão

As quatro características que definem a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica são resumidas em uma única palavra: Ortodoxa. É por isso que falamos "Igreja Ortodoxa", uma forma curta de dizermos "A Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica". É por isso que, se caírmos em algum dos "ismos" acima, intelectualismo, espiritualismo, filetismo ou esteticismo, nós inevitavelmente caímos da Igreja Ortodoxa. Fiquemos em guarda, em sobriedade mantendo a vigília sobre nós mesmos contra estas quatro ilusões: "Seja sóbrio, seja vigilante, porque nosso adversário, o demônio, como um leão que ruge, caminha por aí, buscando que poderá devorar" (1 Pedro 5:8).

Arcipreste Andrew Phillips,
Colchester,
Inglaterra

3/16 Fevereiro 2009
Justos Simeão e Profetiza Ana,
S. Nicolas do Japão



(*) Nota do Tradutor: O autor do artigo é um padre que serve na Inglaterra.

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