Um dos mais ambiciosos planos do Imperador Justiniano (527-565) era resgatar a Península Ibérica dos Visigodos e dos Suevos, a Itália dos Ostrogodos, e a África dos Vândalos; o Imperador Heráclios (610-41) é que finalmente desistiria de todo o plano. As relações entre o oriente grego e a Ibéria eram multifacetadas e íntimas, especialmente durante o século VI (01). Surpreendentemente, não foi na Espanha Visigótico-Bizantina, mas no distante noroeste da Península, habitada pelos Suevos(NT02), que ocorreu tradução de literatura. Ao mesmo tempo, ou pouco depois, foram compostas ali traduções dos Apopthegmata e compilações similares, por ordem do Apóstolo dos Suevos, Martinho de Braga (d.ca. 580). Um certo Paschasius traduziu partes de um codex chamado Vitas Patrum Grecorum que lhe fora dado com esse mesmo exato propósito. A tradução ficou conhecida como Liber Geronticon (02). O próprio Martinho, que havia morado na Palestina antes de fundar o mosteiro de Dume entre os Suevos e se tornar arcebispo na cidade real sueva de Braga, traduziu uma coleção chamada de Setentiae Patrum Aegyptiorum. Também é-lhe atribuída uma coleção de cânones gregos.
Na segunda metade do sétimo século, quando o reino suevo foi incorporado à monarquia visigótica, o Abade Valerius de Bierzo produziu na Galícia uma edição do Vitas Patrum, a qual continha traduções de vidas de santos gregos; não é claro se eram o trabalho da escola de tradutores galegos fundada por Martinho de Braga ou se vinha da Itália.(03)
A população católico-românica e os godos arianos do reino visigótico reconciliaram-se com o Bispo Leandro de Sevilha (578-99), que viera da cidade bizantina de Cartágena (NT03). O sucessor no bispado de Sevilha foi o irmão mais novo de Leandro, Isidoro (599-636), que, no fim das contas, tornou-se o mais famoso autor latino da Espanha.
Seu curto tratado, De ortu et obitu patrum (Migne PL 83, cols. 129-59) contém um núcleo com vidas de profetas, traduzido do grego, dentro de uma série de oitenta e seis rascunhos biográficos de figuras do Antigo e Novo Testamentos; ver Τ. Schermann, Prophetarum vitae fabulosae(Leipzig 1907), and Propheten- und Apostellegenden nebst Jüngerkatalogen des Dorotheus und verwandter Texte, TU 31/g (Leipzig 1907); Α Vaccari, "Una fonte del 'de ortu et obitu Patrum' di S. Isidoro," in Miscellanea Isidoriana (Rome 1936), pp. 165-75.
O principal trabalho de Isidoro é o Etymologiae (Orígenes), o qual serviu o Ocidente por séculos. Como um segundo Varro, ele tentou, em vinte livros curtos, resumir conceitualmente o trivium, o quadrivium, a medicina, o direito, a teologia, a história, a filosofia, a zoologia, a geografia, a produção de livros, a arquitetura, a mineralogia, a metalurgia, a agricultura, questões militares, jogos públicos e privados, construção de navios, e outras áreas de conhecimento e tecnologia. Como geralmente era o caso na antiguidade, o conhecimento transmitido por Isidoro era primariamente grego, via intermediários latinos dos quais ele obtinha essas informações. Vários dados gregos foram preservados nos trabalhos de Isidoro. Ele utiliza palavras gregas, que são escritas em alfabeto grego e incorporadas ao texto latino de acordo com a prática antiga (04). O alfabeto grego é explicado historicamente - segundo os modelos antigos - no início das obras. Além disso ele inclui a importante doutrina da litterae mysticae, que era típica da avaliação medieval do grego: (05)
Cadmus, o filho de Agenor, primeiramente trouxe dezessete letras gregas para a Grécia desde a Fenícia: Α Β Γ Δ Ε Ζ 1 Κ Λ Μ Ν Ο Π Ρ C T Φ. Palamedes acrescentou três mais durante a Guerra de Tróia: Η Χ Ω. Depois, o poeta lírico Simonides acrescentou mais três letras: Ψ Ξ Θ. Pitágoras de Samos primeiramente desenvolveu a letra Y tendo como modelo a vida humana: o traço de baixo significa os anos da infância, ainda incertos, e que não se entregaram ainda ao vício ou virtude. A bifurcação, porém, inicia-se na adolescência: seu braço direito é abrupto, mas leva a uma vida abençoada; o esquerdo é mais fácil e leva ao desastre e à destruição. Persius diz sobre essa letra: "E a letra que estende os braços samianos, revela a trilha ascendente na mão direita" [III 56].
Os gregos possuem cinco letras de mistério. A primeira é o Y, a qual significa a vida humana, e da qual acabamos de falar. A segunda é o Θ, que significa morte, posto que juízes colocam-na ao lado dos nomes daqueles que condenam à pena de morte. E theta significa ΑΠΟ ΤΟΥ ΘΑΝΑΤΟΥ, i.e. "da morte". Por essa razão, ela também possui um cabo no meio, que é o símbolo da morte. Já foi dito: "Theta, és a mais desgraçada das letras". A terceira, T, significa a cruz do Senhor; por isso é traduzida para o hebraico como "sinal". Sobre essa letra, é dito ao anjo em Ezequiel (9:4): "Vá ao centro de Jerusalém e trace um tau na fronte dos homens que lamentam e suspiram". As duas letras restantes são o Α e o Ω , que foram reclamadas como primeira e última pelo próprio Cristo, pois Ele mesmo diz: "Eu sou o Alfa e o Ômega". Quando essas duas letras movem-se uma para a outra, A move-se para o Ω e o Ω, por sua vez, move-se para o A; de forma que o Senhor quer dizer que o fluir do início para o fim e o retorno do fim para o início está nEle. Mas todas as letras gregas formam palavras e números. Pois a letra chamada alfa significa um, a que se chama beta significa dois, e onde escrevem gama, ela é chamada três, e delta é quatro, e assim todas as letras possuem valores numéricos. Os latinos não usam letras por números, mas delas formam apenas palavras, com exceção de I e X, cujas figura também significa a cruz e tem o valor numérico de dez.
Em outra passagem do trabalho, Isidoro designa a língua grega como uma das três línguas sagradas(06)
Existem três línguas sagradas: hebraico, grego e latim, que são as mais distintas em toda a terra. Pois foi com essas línguas que Pilatos escreveu a sentença do Senhor sobre a cruz. Portanto, é também por obscuridade das Santas Escrituras que um conhecimento dessas três línguas é necessário, para que se possa consultar uma ou outra quando o texto em um língua gerar dúvida sobre um nome ou uma tradução. Ainda assim, o grego é considerada uma língua especialmente esplêndida entre as nações. Pois é mais ressonante que o latim e que todas as demais línguas. Suas variedades classificam-se em cinco componentes: primeiro, o Koiné, isto é "misturada" ou "comum", que todos usam; segundo, o Ático, nomeadamente, a língua de Atenas, que todos os autores gregos utilizaram; terceiro, o dórico, usada por egípcios e sírios; quarto o Iônico e quinto o Aélico. Existem várias características distintas a serem observadas nas línguas gregas. Assim está dividida sua língua.
Uma grande parte dessa explicação é derivada de trabalhos mais antigos, como geralmente é o caso na Etymologiae: Isidoro elogia a beleza da língua grega segundo o modelo de Quintiliano. A doutrina da língua sacra é desenvolvida a partir das afirmações de Agostinho sobre as linguae principales (07). Mas aquele que não apenas usa mas também lê Isidoro, observará que existe uma "linha interna... que conecta todos esses trechos aparentemente desconexos" ("innere Linie ...die sich durch alle diese scheinbar gedankenlosen Excerpte zieht")(08). A vitória de Isidoro no que concerne o conhecimento medieval do grego se dá pelo foco no material fundamental e claramente organizado: a litterae mysticae e a linguae sacrae eram schemata de um novo arcaísmo bem adaptado às recém-cristianizadas nações do Ocidente.
01. P. Goubert, "L' Espagne Byzantine. Influences Byzantines sur l' Espagne Wisigothique, " Revue des Études Byzantines 4 (1946) 111-33.
02. Rosweyde, Vitae Patrum. lib. VII (Migne PL 73, cols. 1052-62). New edition by J.G. Freire, A versão latina por Pascásio de Dume dos Apophegmata Patrum (Coimbra 1971), I/2 (I, 159 ff. Liber Geronticon de octo principalibus vitiis). Freire editou uma outra tradução do Apophtegmata do século VI em Commonitiones sanctorum patrum. Uma nova colecção de apotegmas (Coimbra 1974). Essa coleção é quase idêntica à publicada por Rosweyde no terceiro livro do seu Vitae Patrum sob o nome de Rufinus.
03. Rosweyde incluiu essa tradução no apêndice do seu Vitae Patrum. New edition by C.W. Barlow, Martini episcopi Bracarensis opera omnia(New Haven 1950), pp. 30-51; A coleção de cânones, ibid., pp. 123-44. Cf. K. Schäferdiek, Die Kirche in den Reichen der Westgoten und Suewen(Berlin 1967), pp.120 ff.
04. D. de Bruyne, "L' héritage littéraire de l'abbé Saint Valère, "RB 32 (1920), 1-10. Sobre a Vita S. Mariae Aegyptiacae na compilação, uma das mais antigas traduções de "caráter expressivo", ver Kunze, Studien zur Legende der heiligen Maria Aegyptiaca, pp. 28 ff.; cf. W. Berschin, in Mittellateinisches Jahrbuch 10 (1975),310.
05. "As raízes e etimologias gregas no trabalho de Isidoro, as quais estão corrigidas e impressas em grego na edição de Lindsay, são em muitos casos escritas com alfabeto latino nos manuscritos e geralmente são transmitidas de forma quase ilegível, já que nem sempre exibem as formas linguísticas clássicas mesmo no texto original."; Bischoff, in Latin Script and Letters A.D. 400-900, Festschrift Bieler, p. 209. Na mesma passagem, Bischoff mostra como a palavra latina bannita = syllaba, littera saiu da transcrição do Graeca em Etym. I 16, 1: "nam syllaba dicta est ΑΠΟ ΤΟΥCΥΛΛΑΜΒΑΝΕΙΝ ΤΑ ΓΡΑΜΜΑΤΑ."
06. Etym. I 3.
07. Etym. IX 1.
08. J. Fontaine's Isidore de Séville et la culture classique dans l' Espagne Wisigothique (Paris 1959), I/2 (pp. 58-61) sobre o trecho concernente ao alfabeto grego) contém uma análise detalhada das fontes.
02. Rosweyde, Vitae Patrum. lib. VII (Migne PL 73, cols. 1052-62). New edition by J.G. Freire, A versão latina por Pascásio de Dume dos Apophegmata Patrum (Coimbra 1971), I/2 (I, 159 ff. Liber Geronticon de octo principalibus vitiis). Freire editou uma outra tradução do Apophtegmata do século VI em Commonitiones sanctorum patrum. Uma nova colecção de apotegmas (Coimbra 1974). Essa coleção é quase idêntica à publicada por Rosweyde no terceiro livro do seu Vitae Patrum sob o nome de Rufinus.
03. Rosweyde incluiu essa tradução no apêndice do seu Vitae Patrum. New edition by C.W. Barlow, Martini episcopi Bracarensis opera omnia(New Haven 1950), pp. 30-51; A coleção de cânones, ibid., pp. 123-44. Cf. K. Schäferdiek, Die Kirche in den Reichen der Westgoten und Suewen(Berlin 1967), pp.120 ff.
04. D. de Bruyne, "L' héritage littéraire de l'abbé Saint Valère, "RB 32 (1920), 1-10. Sobre a Vita S. Mariae Aegyptiacae na compilação, uma das mais antigas traduções de "caráter expressivo", ver Kunze, Studien zur Legende der heiligen Maria Aegyptiaca, pp. 28 ff.; cf. W. Berschin, in Mittellateinisches Jahrbuch 10 (1975),310.
05. "As raízes e etimologias gregas no trabalho de Isidoro, as quais estão corrigidas e impressas em grego na edição de Lindsay, são em muitos casos escritas com alfabeto latino nos manuscritos e geralmente são transmitidas de forma quase ilegível, já que nem sempre exibem as formas linguísticas clássicas mesmo no texto original."; Bischoff, in Latin Script and Letters A.D. 400-900, Festschrift Bieler, p. 209. Na mesma passagem, Bischoff mostra como a palavra latina bannita = syllaba, littera saiu da transcrição do Graeca em Etym. I 16, 1: "nam syllaba dicta est ΑΠΟ ΤΟΥCΥΛΛΑΜΒΑΝΕΙΝ ΤΑ ΓΡΑΜΜΑΤΑ."
06. Etym. I 3.
07. Etym. IX 1.
08. J. Fontaine's Isidore de Séville et la culture classique dans l' Espagne Wisigothique (Paris 1959), I/2 (pp. 58-61) sobre o trecho concernente ao alfabeto grego) contém uma análise detalhada das fontes.
NT01 No original o autor refere-se à "Espanha" como um nome para toda a Península Ibérica, incluindo mesmo as terras de Portugal, indistinção essa que é um erro comum na língua inglesa. Como o público leitor de língua portuguesa preserva uma memória mais precisa da história da Península, e sabendo que é a ela que o autor original se refere, utilizei o termo mais comum em português "Península Ibérica" para a região que o autor do original tem em mente ao escrever "Espanha".
NT02 O "noroeste da Espanha" no original é claramente a região centro-norte de Portugal, possivelmente alcançando a Galícia, que é precisamente a área que era ocupada pelos suevos, tanto que S. Martinho de Braga (uma das mais tradicionais cidades portuguesas), mencionado logo em seguida, é patrono da fé ortodoxa lusitana.
NT03 Trata-se da mesma Cartagena da Espanha.
NT02 O "noroeste da Espanha" no original é claramente a região centro-norte de Portugal, possivelmente alcançando a Galícia, que é precisamente a área que era ocupada pelos suevos, tanto que S. Martinho de Braga (uma das mais tradicionais cidades portuguesas), mencionado logo em seguida, é patrono da fé ortodoxa lusitana.
NT03 Trata-se da mesma Cartagena da Espanha.
Fonte: "Early Byzantine Italy and the Maritime Lands of the West"
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