A palavra "auxiliadora" já pressupõe que Adão necessita de auxílio para fazer alguma coisa. O único trabalho a que o texto se refere é proteger e cultivar o Paraíso. Os primeiros intérpretes do texto sagrado entendiam que o trabalho no Paraíso não era manual, mas espiritual, significando um labor para a perfeição. De acordo com vários escritores cristãos, a pessoa humana foi criada fisicamente perfeita, mas espiritualmente imperfeita. St. Ireneus de Lyons acreditava que o primeiro homem e a primeira mulher não eram moralmente perfeitos desde o início porque, se fossem, suas ações não teriam qualquer significado moral (1). "Embora tenham sido criados à imagem e semelhança como potencialidade, eles se tornam a image e semelhança através do trabalho espiritual e da sua livre-escolha(2). "E a ordem de trabalhar não se refere a nenhum outro labor que não seja cumprir os mandamentos de Deus"(3). A mulher, portanto, foi criada para trabalhar junto com Adão para o crescimento espiritual de ambos. Por isso, de acordo com os Pais, é que Eva recebeu como punição ser governada pelo homem em Gên 3:16(4). Isto é, ao invés de auxiliar o desenvolvimento espiritual de Adão, ela se tornou uma tentadora e causou sua queda. "
Depois da criação da mulher, Adão regozijou-se de que finalmente (νῦν) encontrara a ajuda que Deus lhe havia prometido. Ele então proclamou e profetizou o destino dessa unidade dos dois (5). Homem e mulher devem ser uma só carne, remoldando a face da humanidade para o que Deus originalmente desejava - uma natureza humana. Temos aqui a instituição do casamento com algumas intuições sociológicas inovadoras. No antigo Oriente Médio, a mulher devia deixar sua família e se juntar à do marido. Opondo-se a esse costume, Adão ordena que os homens deixem tudo e sigam suas esposas. Mesmo assim, essa unidade em uma só "carne" contém um elemento de transiência porque a "carne" é temporária e mortal. Portanto, o casamento é uma instituição deste mundo presente e não se estende a próxima vida. Para São João Crisóstomo, o homem e a mulher são partes do todo da humanidade; ambos são incompletos à sua própria maneira. Eles precisam um do outro com o fim de serem completos e sua perfeição depende da unidade dos dois(6). Na tipologia bíblica, Deus é o νυμφαγωγός(7) do primeiro casal e de todos os casais de todas as épocas.
A Septuaginta continuou fiel ao texto hebraico original e traduziu a palavra adam (de adama, que significa chão, terra) com a palavra ἂνθρωπος (pessoa humana). Os autores mudam para o nome próprio Ἀδάμ (Adão) apenas no capítulo 2:16 porque desse ponto em diante a história da criação da mulher começa com o plano de Deus de que o homem não deveria ficar só. De acordo com alguns intérpretes, no texto hebreu, a palavra adam não é usada como nome próprio, mas como seu sentido literal de "humanidade" ou "pessoas"(8). Sendo assim, a mulher não teria sido criada do lado do homem (Adão) mas do lado da primeira pessoa humana. Assim, a proclamação de Adão de que a mulher (issa) fora criada do homem (is) faz parecer que isso é uma influência sociológica inserida no texto(9). Esse obstáculo para os intérpretes do texto hebreu deu origem a idéia de que a primeira pessoa humana fora criada como um ser andrógino, mas tal conceito jamais foi adotado pela teologia cristã.
A criação singular da pessoa humana com imagem e semelhança de Deus é uma grande honra concedida por Deus à humanidade, mas é uma questão difícil para os intérpretes do texto. Embora a expressão dupla "besalmenu kidemutenu" em Gên 1:26 conecte a descritiva saelaem (figura plástica, imagem) com a abstrata demut (similaridade, semelhança)(10) apesar de terem sentidos diferentes, a tradução da Septuaginta indica o uso dos termos "imagem" e "semelhança" como intercambiáveis (11). A interpretação patrística, no entanto, compreende "imagem" como algo dado no ato da criação, enquanto "semelhança" é algo que tem que ser conquistado pela vontade humana trabalhando junto com Deus. O uso da palavra descritiva saelaem no texto não deve nos levar a dizer que se trata de uma tentaiva de antropormofização de Deus, mas ao contrário é uma teomorfização da pessoa humana(12). O ponto principal da narrativa é que a pessoa humana não é auto-sustentável, mas vem de Deus e vive uma vida transparente na sua presença. A humanidade veio a existir, compartilhando algo com Seu criador (Seu sopro(13)) e representando Deus nesse mundo de acordo com sentido original da palavra saelaem.(14)
Depois da Bíblia, Tatiano foi o primeiro dos escritores cristãos a utilizar os temos "imagem e semelhança", e os compreendia como se referindo ao Espírito Santo o qual fez o homem compartilhar a imortalidade de Deus. Depois da queda, os seres humanos separaram-se do Espírito de Deus e se tornaram mortais(15). "Pois o homem foi feito de uma natureza intermediária, nem completamente mortal, nem inteiramente imortal, mas capaz de ambas"(16). De acordo com o professor John Romanides: "Perfeição moral e imortalidade (...) constituem toda a base da compreensão da imagem e semelhança de Deus e da antiga doutrina cristã da queda e da salvação"(17). A despeito de várias interpretações sobre a imagem e semelhança de Deus, nós podemos entendê-la como uma cruz com a dimensão horizontal se referindo à unidade da natureza humana (18) e a dimensão vertical se referindo a nossa relação com Deus (19).
As criaturas amadas foram colocadas no Paraíso para desfrutarem da felicidade com apenas uma restrição. Havia um fruto que lhes era proibido. A árvore do “conhecimento do bem e do mal” é mencionada apenas no Gênese em mais nenhum lugar nas Escrituras. São Téofilo de Antioquia diz: “...a árvore do conhecimento em si era boa, seu fruto era bom. Pois não era a árvore, como alguns pensam, mas a desobediência que continha morte em si. Pois nada havia no fruto senão conhecimento; o conhecimento, porém, é bom quando é usado com discernimento”(20). No Antigo Testamento, o conhecimento não é teórico, distante do sujeito, mas inclui o sujeito (21) algumas vezes de um modo bem material como quando Adão conhece Eva “conheceu Adão a sua esposa Eva, e ela concebeu e deu à luz Cain”(22). Da mesma forma, no Antigo Testamento, conhecer Deus é ser conhecido por Deus e pressupõe uma relação mútua. Assim, o conhecimento de Deus significa a característica pessoal de um reconhecimento mútuo. O mesmo se aplica no caso do bem e do mal, e de como o pecado e o mal entraram na vida humana.
[1] J. Romanides, The Ancestral Sin, (Ridgewood, 2002), 126.
[2] Irenaeus, Refutação citada em Romanides, The Ancestral Sin, 158.
[3] St. Theophilus of Antioch, To Autolycus, in Romanides, The Ancestral Sin, 125.
[4] «πρός τόν ἂνδρα σου ἡ ἀποστροφή σου, καί αὐτός σου κυριεύσει» Gên 3:16.
[5] «τοῦτο νῦν ὀστοῦν ἐκ τῶν ὀστέων μου καί σάρξ ἐκ τῆς σαρκός μου ‘ αὓτη κληθήσετε γυνή, ὃτι ἐκ τοῦ ἀνδρός αὐτῆς ἐλήφθη αὓτη’ ἓνεκεν τούτου καταλείψει ἂνθρωπος τόν πατέρα αὐτοῦ καί τήν μητέρα καί προσκολληθήσεται πρός τήν γυναῖκα αὐτοῦ, καί ἒσονται οἱ δύο είς σάρκα μίαν» Gên 2:23,24.
[6] Mais sobre a interpretação de Crisóstomo sobre o casamento em S. Papadopoulos, “Ὁ Γάμος: Μυστήριο Ἀγάπης καί Μυστήριο «εἰς Χριστόν» (Θεολογική προσέγγιση τοῦ μυστηριακοῦ χαρακτήρα τοῦ Γάμου)” no livro Ιερά Σύνοδος της Εκκλησίας της Ελλάδος, Ὁ Γάμος στήν Ὀρθόδοξη Ἐκκλησία, (Αθήνα, 2004).
[7] O que leva o noivo até a noiva.
[8] Pentiuc, Jesus the Messiah, 8.
[9] Ibid., 21.
[10] W. Zimmerli, Ἐπίτομη Θεολογία τῆς Παλαιᾶς Διαθήκης, Μετάφραση Π. Στογιάννος, Β΄ Έκδοση, (Αθήνα, 2001), 42.
[11] Pentiuc, Jesus the Messiah, 9.
[12] Zimmerli, Ἐπίτομη Θεολογία, 43.
[13] «καί ἐνεφύσησεν εἰς τό πρόσωπον αὐτοῦ πνοήν ζωῆς, καί ἐγένετο ὁ ἂνθρωπος εἰς ψυχήν ζῶσαν» Gên 2:7.
[14] C. Westermann, Genesis 1-1: A Commentary, trans. John Scullion (Minneapolis, 1984), 147-155.
[15] Romanides, The Ancestral Sin, 147.
[16] St. Theophilus of Antioch, To Autolycus, in Romanides, The Ancestral Sin, 125.
[17] Romanides, The Ancestral Sin, 111.
[18] Estamos todos conectados aos outros porque todos compartilhamos a imagem de Deus.
[19]Precisamos estar em comunhão com nosso Criador. Ver Pentiuc, Jesus the Messiah, 6, 13.
[20] St. Theophilus of Antioch, To Autolycus, in Romanides, The Ancestral Sin, 125
[21] Zimmerli, Ἐπίτομη Θεολογία, 185.
[22] «Ἀδάμ δέ ἒγνω Εὒαν τήν γυναῖκα αὐτοῦ καί συλλαβοῦσα ἒτεκε τόν Κάϊν» Gên 4:1.
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