quarta-feira, 17 de junho de 2015

20 Problemas com a Apologética da Sé Romana

Os pontos abaixo são escritos com o pressuposto de que o leitor está familiarizado com as questões típicas que a sé romana utiliza para alegar ser ela a Igreja Católica e não a comunhão da Igreja Católica Ortodoxa, isto é, as questões da Supremacia e Infalibilidade Papais e o Filioque. A leitura do artigo poderá dar uma ideia vaga para o leitor que não as conhece, mas recomendo que se aprofunde sobre tais temas. Cada ponto em si poderia gerar toda uma série de debates e listo-os aqui apenas com fim de notas de resumo.


1) Todo o contexto da famosa passagem de Mateus 16:18 ("Tu és Pedro") forma um claro argumento contra a inovadora leitura que a sé romana sugere para fundamentar o conceito moderno de papado. O texto deixa bem claro que Simão está dizendo o que todos os Apóstolos crêem, está sendo, não um professor ou confirmador, mas um porta-voz do grupo. O que ele diz depende do grupo e não o contrário. Ele submeteu sua fé a fé dos apóstolos e não o contrário. O que Cristo fala dele, portanto, fala de todos os Apóstolos que ele *representa*. Seu novo nome, Pedro, assim como as chaves, são entregues a ele como efeito de sua defesa da fé ortodoxa. Se a interpretação romana da passagem fosse verdadeira, ou seja, se a autoridade do líder desse garantia sobrenatural a certas proclamações de dogma e moral "ex cathedra" dele, então Cristo teria perguntado aos Apóstolos quem Ele é, e ao ver a confusão reinar por falta de uma autoridade, daria a chave e a autoridade a Simão, mudaria-lhe o nome e faria novamente a pergunta "Quem dizeis que sou" e desta vez Pedro responderia corretamente dando fim aos debates entre os apóstolos. Mas é o preciso contrário que ocorre. A autoridade é dada a quem proclama a fé ortodoxa, no caso Pedro. Sem a fé ortodoxa, a autoridade perde não apenas sua legitimidade, mas seu poder. Tanto é assim que logo após o evento da chave, Pedro, provavelmente orgulhoso pela honra que acabara de receber, ousa ditar a Jesus como Ele devia agir, tentando-O a não seguir para a Cruz. Atitude aliás, muito semelhante a da sé romana que alega crer que a Eucaristia ortodoxa é verdadeiramente o Corpo de Cristo mas não de forma legítima por não estar submissa ao papado, ou seja, o próprio Cristo está realmente ali, mas está "irregular" porque não submisso ao Papa. Logo após o episódio das chaves, quando o portador das chaves diz a Cristo onde ele deve ou não deve estar, Cristo responde prontamente chamando-o não mais de "Pedro", mas de nada menos que "Satanás". Fica assim claro que os nome e autoridade de Simão não lhe são inerentes, mas *dependem* de que continuamente confesse a fé ortodoxa, humildemente servindo de porta-voz do colégio apostólico e nunca o contrário.

2) O próprio Pedro dá testemunho do significado da palavra "rocha" em suas epístolas. Os Pais da Igreja em ocasiões diferentes dizem que a rocha fundamental da Igreja seria Pedro, a fé ortodoxa ou Jesus, mas Pedro diz claramente e mais de uma vez que a rocha fundamental é Jesus Cristo. Como ele mesmo participou da conversa em Mat 16:18, ele é uma testemunha ideal para dar o significado da imagem da rocha. Se o seu objetivo fosse criar um líder do tipo "papal" na Igreja, Pedro poderia com humildade chamar atenção para o fato dele mesmo ser a rocha de que Jesus falava, mas ao contrário, numa época em que os seguidores começavam a criar divisões por causa dos apóstolos, como vemos nas Epístolas de S. Paulo, S. Pedro vem relembrar, junto com Paulo, que o signo e fundamento da unidade é o próprio Cristo.

3) Prefiguração da Liderança da Igreja 01: Prefiguração é um fenômeno religioso típico no qual a estrutura de um evento espiritual chave surge em algum outro evento simbólico anterior. Por exemplo, quando José, o filho favorito de Jacó, é traído por seus irmãos, liderados por Judá, e vendido por 30 moedas de prata, isso é considerado uma prefiguração de Jesus Cristo, o Filho de Deus, traído por Judas (outra forma do nome Judá), e é vendido por 30 moedas de prata. Difere da profecia, porque a profecia é a proclamação de um profeta a quem Deus concede certo conhecimento. A prefiguração assemelha-se mais aos pequenos tremores que antecedem o terremoto principal, tendo o mesmo padrão, mas sendo de menor intensidade.

No caso das chaves dadas a Pedro, Jesus referencia Isaías 22:15-25, onde um mau tesoureiro tem as chaves da sala do tesouro tomadas de si por não ter sido fiel. As chaves são então entregues a um novo tesoureiro, que recebe as mesmas honras e promessas do primeiro, com a implicação de que ele deve manter-se fiel para que não lhe aconteça o mesmo que ocorreu com o primeiro, ou seja, cair em desgraça. O que prefiguração mostra de relevante para nosso tópico é que (1) é possível ter as chaves e a autoridade e ainda assim perder ambas, como ocorreu com o primeiro tesoureiro; (2) é a fidelidade que garante as chaves e não o contrário.

4) Prefiguração da Liderança da Igreja 02: Nos Evangelhos, S. Pedro é apresentado mais de uma vez em paralelo a Judas. Judas é o traidor que não se arrepende, e Pedro é também um traidor, por ter negado Jesus, mas que se arrepende. Esse tema se repete no evento em que Pedro caminha sobre as águas, mas quando fraqueja na fé, perde o "poder" que Jesus lhe conferira. Uma vez mais, o poder não garante a fé, mas a fé é que sustenta o poder.

5) Jesus não apenas nunca afirmou que Pedro deveria governar ou ensinar os outros Apóstolos, mas Ele concretamente atribui esse papel ao Espírito Santo exclusivamente. A passagem em que Pedro diz sim três vezes ao Cristo mostra sua redenção dos três nãos, não tendo nada a ver com governança da Igreja.

6) O Sínodo Apostólico em Jerusalém foi presidido por Tiago e ao contrário de alegações de interpretações romanas, Pedro não teve a palavra final. Pedro estava errado em questões de moral concernentes a como se comportar em meio aos gentios e judeus. Seu papel entre os Apóstolos parece mais semelhante ao de um santo ancião em mosteiros ortodoxos do que semelhante ao de um abade, que no concílio teria Tiago como seu análogo. Ele tinha dons e um coração santo e perfeitamente contrito e por isso é que era referência entre os cristãos da época.

7) Até mesmo a atual sé romana admite que o papel do Papa não foi exercido ao longo do 1o milênio da forma que se alegou para ele no 2o milênio e ainda se defende hoje. Seu argumento é que se trata de um desenvolvimento legítimo, mas já que nenhuma das Igrejas com que Roma estava em comunhão jamais aceito isso, e nem mesmo igrejas heterodoxas que surgiram antes do cisma, claramente a doutrina papal romana não atende os critérios de catolicidade de S. Vicente de Lerins e portanto não é um desenvolvimento legítimo.

8) Não apenas há ausência de evidência para a doutrina papal romana. Há evidência positiva de que o papel de primaz da Igreja não tem a autoridade exaltada que Roma crê ter. O Papa nunca convocou ou presidiu nenhum dos concílios ecumênicos do 1o milênio sendo que o 5o aconteceu a despeito de o Papa estar residindo em Constantinopla onde ele se realizou, e ainda ter expressamente proibido sua realização. Além disso, o Papa Gregório I, que era ortodoxo, chegou a condenar especificamente o uso do título de "patriarca universal". A apologia romana alega que ele estava condenando o uso do termo por qualquer um que não fosse ele mesmo, mas essa restrição não aparece em nenhum trecho de sua carta e nem é vagamente sugerida pelo contexto. Ao condenar o uso do termo, ele de fato o faz para toda e qualquer pessoa, inclusive os bispos romanos não-ortodoxos que vieram depois dele.

9) A reforma legal feita pelo imperador Justiniano é inequívoca quanto ao papel e grau de poder do Papa. Ele é definido como "cabeça do colegiado de bispos", não de toda a Igreja. O primeiro detalhe importante é que é uma definição legal e não teológica. O segundo é que estipula um papel importante porém limitado em comparação ao que Roma hoje alega. O valor das reformas de Justiniano é que são um testemunho de primeira-mão sobre como as coisas funcionavam, da parte de pessoas que eram especialistas em leis, cânones e questões administrativas da época;

10) Ao contrário das alegações romanas, o Papa já ensinou heresias duas vezes: na questão do monotelismo, quando o Papa Honório chegou a ser condenado e anatemizado no concílio ecumênico posterior, e na questão do filioque. A própria sé romana rejeitou o filioque no Credo como heresia até 1014, quando foi inserido por questões cesaropapistas, por pressões de Henrique II na sua coroação como imperador do Sacro Império Germânico. Não apenas isso, mas a situação levanta a questão de qual papa ensinou erroneamente na questão dogmática do filioque, o que aceitou o filioque ou aqueles que obstinadamente se opuseram negando-o? Qualquer que seja a resposta, o conceito de infalibilidade papal cai aí mesmo.

11) O conceito de infalibilidade também afirma infalibilidade em termos de ensino de moral. Sabe-se que a forma mais poderosa de ensino é o exemplo, particularmente no caso da moralidade. Muitos papas, especialmente durante o chamado Século Obscuro (século X), foram menos que exemplares em termos de moralidade, o que demonstra que ensinaram coisas erradas através de seus maus exemplos.

12) Existe um exemplo bíblico do conceito de "ex cathedra", quando Jesus menciona que os fariseus sentam-se sobre a cadeira/trono/cátedra (dependendo da tradução) de Moisés. Isso demonstra que em termos de simbologia cristã, assim como muitos podem sentar-se no "trono de Moisés", ou seja, representando coletivamente a autoridade do profeta, muitos podem também sentar-se no trono de Pedro, isto é, todos os bispos. O paralelo também demonstra que Pedro é como "Moisés" entre nós, não como Cristo, pelo menos no que tange a autoridade na Igreja. Assim como Moisés guiava os escravos para a liberdade na Terra Prometida, Pedro foi responsável pela conversão de judeus e gentios, sendo o primeiro a recebê-los, como um profeta que vai a frente. E assim como Moisés foi substituído por um colegiado de juízes, Pedro foi substituído por um colegiado de bispos;

13) Alegações papais de supremacia e autoridade começaram a desenvolver-se na forma em que conhecemos hoje fundamentando-se em "provas" como as Doações de Constantino e os decretos de Pseudo-Isidoro, todos hoje sabidamente falsificações. Também fundamentavam-se em outro argumentos hoje conhecido como falso: que os "gregos" teriam alterado o grego para retirar o filioque. Hoje sabe-se que o filioque nunca esteve nos credos originais dos Concílios, sendo interpolação ocidental.

14) As alegações de jurisdição universal foram resistidas também no Ocidente. O Arcebispo da Sé Apostólica de São Tiago em Compostela opôs-se a tais alegações porém foi obliterado pelas forças papais;

15) Assim que surgem as alegações de supremacia ao início do século XI, o Ocidente começa a partir-se: ocorre o Cisma Ocidental, chegando a existir três papas concorrentes, surgem várias seitas neo-gnósticas proto-revolucionárias, o Anglicanismo e finalmente o Protestantismo. Na ausência da governança transcendente do Espírito Santo existente na Igreja Católica Ortodoxa, a busca da autoridade imanetizou-se, levando a todos esses movimentos que têm em comum a busca de uma nova fonte de autoridade: bispo, Escrituras, rei, conhecimento ou segredos cósmicos. O problema dos papas concorrentes foi decidido através de Concílio local no Ocidente, na última vez em que se reconheceu no Ocidente que o bispo de Roma era líder no Concílio, a ele submetido, mas não sobre ele.

16) Com o surgimento de tais novos desenvolvimentos e buscas na espiritualidade ocidental, as práticas começam a mudar drasticamente daquelas do primeiro milênio. Isso fica perceptível na música, arquitetura e arte, mostrando que surgira uma sensibilidade de estar no mundo diferente da anterior. Uma das características mais marcantes é o desenvolvimento de espiritualidades "intelectuais" e "românticas", sugerindo que a experiência coletiva da Cristandade ocidental já não consegui diferencia o nous/intelecto da mente (razão/emoção);

17) Um tipo negativo de evidência é o tipo de problemas que a sé romana não mais tinha. Se a Igreja deve continuar a mesma e sem mudanças da época Apostólica até hoje, devemos esperar que os mesmos tipos de problema continuem se repetindo sempre, e também que os grupos que se separem dela tenham pontos em comum que revelem sua origem comum:

a) a maioria das epístolas e até mensagens de Cristo no livro do Apocalipse se dirigem a igrejas locais, definidas por etnias e nacionalidades;

b) essas igrejas discutem entre si, até brigam e deixam de comungar umas com as outras precisando serem lembradas de permanecerem unidas. A situação descrita em (a) e (b) é exatamente a da Igreja Católica Ortodoxa e o "problema" que Roma pensa ter resolvido com sua forma centralizada de governo é apenas um atributo inevitável da forma da Igreja. Ao buscar abandonar o atributo, Roma acabou por abandonar o todo;

c) Apesar de tais problemas já existirem nos tempos apostólicos (como existem até hoje na Igreja Ortodoxa), nunca vemos em Atos, nas Epístolas ou no Apocalipse a recomendação de que se submetam a Roma ou Pedro ou o Bispo de Roma para restaurarem a unidade, o que seria o chamado natural, como Roma faz hoje. O fato de que essas relações não são resolvidas com chamados de obediência ao Papa ou a Roma evidencia que não é esse o papel do Primeiro-Entre-Iguais;

d) Os cismas e heresias que saíram da Igreja Ortodoxa: Arianos, Nestorianos, Coptas, Siríacos, Romanos, Velhos Crentes, Velho Calendaristas, esses dois últimos cismas conhecidos da Ortodoxia no 2o milênio, todos têm muitos elementos, especialmente litúrgicos, semelhantes, tanto que algumas pessoas chegam a não entender porque todas essas igrejas não se "unem". No caso de Roma, embora tenham saído cismas formalmente semelhantes, o segundo milênio é caracterizado por separações que são radicalmente diferentes: as igrejas da Reforma Protestante clássica. Essa diferença desses cismas para os cismas do primeiro milênio sugere que essas igrejas partiam de um ponto diferente do ponto que aqueles outros partiram.

18) Um dos principais argumentos da sé romana para seu modelo de primaz da Igreja é que, "embora tenham havido maus papas, nenhum ensinou erro". Mesmo que não houvessem os exemplos mencionados no item (10), teríamos que abandonar esse argumento por ser circular. "Como saberíamos que o Papa é infalível?" "Porque nunca nenhum ensinou nenhum erro". "Como sabemos que nunca nenhum ensinou nenhum erro?" "Porque todas as igrejas católicas sempre concordaram com ele". "Mas 4/5 das sé patriarcais do mundo apontaram heresias em seus ensinos no primeiro milênio..." "Isso significa que naquele momento ao menos não eram ou não agiam como católicas". "Como você sabe?" "Porque estavam discordando do que o Papa ensinou ou pelo menos não estavam entendendo". "Se discordavam, por que deveriam concordar?" "Porque ele é infalível no seu papel de ensinar dogma e moral". "Como você sabe?" -"Porque ele nunca ensinou nenhum erro". Ou a forma curta: "Confirmamos que o Papa é infalível porque ele nunca ensinou nenhum erro e confirmamos que nunca ensinou nenhum erro porque tendo sido ensinado pelo papa infalível nesse papel, aceitamos como sem erro."

19) O conceito de uma sé proclamar independência e "viajar sozinha", seja Roma, os Coptas Etíopes, Armênios, Indianos ou Siríacos é evidência de falta de catolicidade e e que não cumpre o sinal previsto por Cristo de seus seguidores seriam conhecidos por se amarem, isto é, por se manterem unidos;

20) Embora existam milagres que sugiram a santidade de indivíduos particulares, os milagres coletivos e visíveis de Roma dos últimos séculos sempre envolvem um chamado a retornarem a fé, especialmente os Eucarísticos que desde sempre foram um sinal de queda ou queda iminente da fé ortodoxa, o que sugere que se não se constituíram em heresia radical ainda, são ao menos um cisma e que necessitam retornar a plenitude da fé da Igreja Católica Ortodoxa, caminho que pela graça de Deus há de ser trilhado um dia, nem que seja pela conversão individual de cada um.

2 comentários:

Fábio Barreto disse...

Muito bom o texto prezado anagnostis Fábio. A Pedra de tropeço da Igreja Romana foi o Estado Pontifício(Doação de Pepino, o Breve), após oque os Bispos de Roma passaram a acumular Poder Temporal e Poder Espiritual, afiançado por "sacros-imperadores" ocidentais, e com isso pouco a pouco foram se convencendo da posse de uma exclusividade, excepcionalidade e centralidade que nem São Simão Cefas apóstolo, nem qualquer Papa do primeiro milênio jamais arrogou a si mesmo.

allabatera disse...

Maravilhoso texto! Sou reformado de origem, mas profundo admirador da Ortodoxia Oriental, principalmente a Siríaca, é concordo plenamente com o autor sobre os erros da ICAR.
Deus nos abençoe!