terça-feira, 23 de junho de 2015

O Império Bizantino e a Península Ibérica


Um dos mais ambiciosos planos do Imperador Justiniano (527-565) era resgatar a Península Ibérica dos Visigodos e dos Suevos, a Itália dos Ostrogodos, e a África dos Vândalos; o Imperador Heráclios (610-41) é que finalmente desistiria de todo o plano. As relações entre o oriente grego e a Ibéria eram multifacetadas e íntimas, especialmente durante o século VI (01). Surpreendentemente, não foi na Espanha Visigótico-Bizantina, mas no distante noroeste da Península, habitada pelos Suevos(NT02), que ocorreu tradução de literatura. Ao mesmo tempo, ou pouco depois, foram compostas ali traduções dos Apopthegmata e compilações similares, por ordem do Apóstolo dos Suevos, Martinho de Braga (d.ca. 580). Um certo Paschasius traduziu partes de um codex chamado Vitas Patrum Grecorum que lhe fora dado com esse mesmo exato propósito. A tradução ficou conhecida como Liber Geronticon (02). O próprio Martinho, que havia morado na Palestina antes de fundar o mosteiro de Dume entre os Suevos e se tornar arcebispo na cidade real sueva de Braga, traduziu uma coleção chamada de Setentiae Patrum Aegyptiorum. Também é-lhe atribuída uma coleção de cânones gregos.

Na segunda metade do sétimo século, quando o reino suevo foi incorporado à monarquia visigótica, o Abade Valerius de Bierzo produziu na Galícia uma edição do Vitas Patrum, a qual continha traduções de vidas de santos gregos; não é claro se eram o trabalho da escola de tradutores galegos fundada por Martinho de Braga ou se vinha da Itália.(03)

A população católico-românica e os godos arianos do reino visigótico reconciliaram-se com o Bispo Leandro de Sevilha (578-99), que viera da cidade bizantina de Cartágena (NT03). O sucessor no bispado de Sevilha foi o irmão mais novo de Leandro, Isidoro (599-636), que, no fim das contas, tornou-se o mais famoso autor latino da Espanha.

Seu curto tratado, De ortu et obitu patrum (Migne PL 83, cols. 129-59) contém um núcleo com vidas de profetas, traduzido do grego, dentro de uma série de oitenta e seis rascunhos biográficos de figuras do Antigo e Novo Testamentos; ver Τ. Schermann, Prophetarum vitae fabulosae(Leipzig 1907), and Propheten- und Apostellegenden nebst Jüngerkatalogen des Dorotheus und verwandter Texte, TU 31/g (Leipzig 1907); Α Vaccari, "Una fonte del 'de ortu et obitu Patrum' di S. Isidoro," in Miscellanea Isidoriana (Rome 1936), pp. 165-75.

O principal trabalho de Isidoro é o Etymologiae (Orígenes), o qual serviu o Ocidente por séculos. Como um segundo Varro, ele tentou, em vinte livros curtos, resumir conceitualmente o trivium, o quadrivium, a medicina, o direito, a teologia, a história, a filosofia, a zoologia, a geografia, a produção de livros, a arquitetura, a mineralogia, a metalurgia, a agricultura, questões militares, jogos públicos e privados, construção de navios, e outras áreas de conhecimento e tecnologia. Como geralmente era o caso na antiguidade, o conhecimento transmitido por Isidoro era primariamente grego, via intermediários latinos dos quais ele obtinha essas informações. Vários dados gregos foram preservados nos trabalhos de Isidoro. Ele utiliza palavras gregas, que são escritas em alfabeto grego e incorporadas ao texto latino de acordo com a prática antiga (04). O alfabeto grego é explicado historicamente - segundo os modelos antigos - no início das obras. Além disso ele inclui a importante doutrina da litterae mysticae, que era típica da avaliação medieval do grego: (05)

Cadmus, o filho de Agenor, primeiramente trouxe dezessete letras gregas para a Grécia desde a Fenícia: Α Β Γ Δ Ε Ζ 1 Κ Λ Μ Ν Ο Π Ρ C T Φ. Palamedes acrescentou três mais durante a Guerra de Tróia: Η Χ Ω. Depois, o poeta lírico Simonides acrescentou mais três letras: Ψ Ξ Θ. Pitágoras de Samos primeiramente desenvolveu a letra Y tendo como modelo a vida humana: o traço de baixo significa os anos da infância, ainda incertos, e que não se entregaram ainda ao vício ou virtude. A bifurcação, porém, inicia-se na adolescência: seu braço direito é abrupto, mas leva a uma vida abençoada; o esquerdo é mais fácil e leva ao desastre e à destruição. Persius diz sobre essa letra: "E a letra que estende os braços samianos, revela a trilha ascendente na mão direita" [III 56].

Os gregos possuem cinco letras de mistério. A primeira é o Y, a qual significa a vida humana, e da qual acabamos de falar. A segunda é o Θ, que significa morte, posto que juízes colocam-na ao lado dos nomes daqueles que condenam à pena de morte. E theta significa ΑΠΟ ΤΟΥ ΘΑΝΑΤΟΥ, i.e. "da morte". Por essa razão, ela também possui um cabo no meio, que é o símbolo da morte. Já foi dito: "Theta, és a mais desgraçada das letras". A terceira, T, significa a cruz do Senhor; por isso é traduzida para o hebraico como "sinal". Sobre essa letra, é dito ao anjo em Ezequiel (9:4): "Vá ao centro de Jerusalém e trace um tau na fronte dos homens que lamentam e suspiram". As duas letras restantes são o Α e o Ω , que foram reclamadas como primeira e última pelo próprio Cristo, pois Ele mesmo diz: "Eu sou o Alfa e o Ômega". Quando essas duas letras movem-se uma para a outra, A move-se para o Ω e o Ω, por sua vez, move-se para o A; de forma que o Senhor quer dizer que o fluir do início para o fim e o retorno do fim para o início está nEle. Mas todas as letras gregas formam palavras e números. Pois a letra chamada alfa significa um, a que se chama beta significa dois, e onde escrevem gama, ela é chamada três, e delta é quatro, e assim todas as letras possuem valores numéricos. Os latinos não usam letras por números, mas delas formam apenas palavras, com exceção de I e X, cujas figura também significa a cruz e tem o valor numérico de dez.

Em outra passagem do trabalho, Isidoro designa a língua grega como uma das três línguas sagradas(06)

Existem três línguas sagradas: hebraico, grego e latim, que são as mais distintas em toda a terra. Pois foi com essas línguas que Pilatos escreveu a sentença do Senhor sobre a cruz. Portanto, é também por obscuridade das Santas Escrituras que um conhecimento dessas três línguas é necessário, para que se possa consultar uma ou outra quando o texto em um língua gerar dúvida sobre um nome ou uma tradução. Ainda assim, o grego é considerada uma língua especialmente esplêndida entre as nações. Pois é mais ressonante que o latim e que todas as demais línguas. Suas variedades classificam-se em cinco componentes: primeiro, o Koiné, isto é "misturada" ou "comum", que todos usam; segundo, o Ático, nomeadamente, a língua de Atenas, que todos os autores gregos utilizaram; terceiro, o dórico, usada por egípcios e sírios; quarto o Iônico e quinto o Aélico. Existem várias características distintas a serem observadas nas línguas gregas. Assim está dividida sua língua.

Uma grande parte dessa explicação é derivada de trabalhos mais antigos, como geralmente é o caso na Etymologiae: Isidoro elogia a beleza da língua grega segundo o modelo de Quintiliano. A doutrina da língua sacra é desenvolvida a partir das afirmações de Agostinho sobre as linguae principales (07). Mas aquele que não apenas usa mas também lê Isidoro, observará que existe uma "linha interna... que conecta todos esses trechos aparentemente desconexos" ("innere Linie ...die sich durch alle diese scheinbar gedankenlosen Excerpte zieht")(08). A vitória de Isidoro no que concerne o conhecimento medieval do grego se dá pelo foco no material fundamental e claramente organizado: a litterae mysticae e a linguae sacrae eram schemata de um novo arcaísmo bem adaptado às recém-cristianizadas nações do Ocidente.

01. P. Goubert, "L' Espagne Byzantine. Influences Byzantines sur l' Espagne Wisigothique, " Revue des Études Byzantines 4 (1946) 111-33.

02. Rosweyde, Vitae Patrum. lib. VII (Migne PL 73, cols. 1052-62). New edition by J.G. Freire, A versão latina por Pascásio de Dume dos Apophegmata Patrum (Coimbra 1971), I/2 (I, 159 ff. Liber Geronticon de octo principalibus vitiis). Freire editou uma outra tradução do Apophtegmata do século VI em Commonitiones sanctorum patrum. Uma nova colecção de apotegmas (Coimbra 1974). Essa coleção é quase idêntica à publicada por Rosweyde no terceiro livro do seu Vitae Patrum sob o nome de Rufinus.

03. Rosweyde incluiu essa tradução no apêndice do seu Vitae Patrum. New edition by C.W. Barlow, Martini episcopi Bracarensis opera omnia(New Haven 1950), pp. 30-51; A coleção de cânones, ibid., pp. 123-44. Cf. K. Schäferdiek, Die Kirche in den Reichen der Westgoten und Suewen(Berlin 1967), pp.120 ff.

04. D. de Bruyne, "L' héritage littéraire de l'abbé Saint Valère, "RB 32 (1920), 1-10. Sobre a Vita S. Mariae Aegyptiacae na compilação, uma das mais antigas traduções de "caráter expressivo", ver Kunze, Studien zur Legende der heiligen Maria Aegyptiaca, pp. 28 ff.; cf. W. Berschin, in Mittellateinisches Jahrbuch 10 (1975),310.

05. "As raízes e etimologias gregas no trabalho de Isidoro, as quais estão corrigidas e impressas em grego na edição de Lindsay, são em muitos casos escritas com alfabeto latino nos manuscritos e geralmente são transmitidas de forma quase ilegível, já que nem sempre exibem as formas linguísticas clássicas mesmo no texto original."; Bischoff, in Latin Script and Letters A.D. 400-900, Festschrift Bieler, p. 209. Na mesma passagem, Bischoff mostra como a palavra latina bannita = syllaba, littera saiu da transcrição do Graeca em Etym. I 16, 1: "nam syllaba dicta est ΑΠΟ ΤΟΥCΥΛΛΑΜΒΑΝΕΙΝ ΤΑ ΓΡΑΜΜΑΤΑ."

06. Etym. I 3.

07. Etym. IX 1.

08. J. Fontaine's Isidore de Séville et la culture classique dans l' Espagne Wisigothique (Paris 1959), I/2 (pp. 58-61) sobre o trecho concernente ao alfabeto grego) contém uma análise detalhada das fontes.

NT01 No original o autor refere-se à "Espanha" como um nome para toda a Península Ibérica, incluindo mesmo as terras de Portugal, indistinção essa que é um erro comum na língua inglesa. Como o público leitor de língua portuguesa preserva uma memória mais precisa da história da Península, e sabendo que é a ela que o autor original se refere, utilizei o termo mais comum em português "Península Ibérica" para a região que o autor do original tem em mente ao escrever "Espanha". 

NT02 O "noroeste da Espanha" no original é claramente a região centro-norte de Portugal, possivelmente alcançando a Galícia, que é precisamente a área que era ocupada pelos suevos, tanto que S. Martinho de Braga (uma das mais tradicionais cidades portuguesas), mencionado logo em seguida, é patrono da fé ortodoxa lusitana.

NT03 Trata-se da mesma Cartagena da Espanha.

Fonte: "Early Byzantine Italy and the Maritime Lands of the West"  

quarta-feira, 17 de junho de 2015

20 Problemas com a Apologética da Sé Romana

Os pontos abaixo são escritos com o pressuposto de que o leitor está familiarizado com as questões típicas que a sé romana utiliza para alegar ser ela a Igreja Católica e não a comunhão da Igreja Católica Ortodoxa, isto é, as questões da Supremacia e Infalibilidade Papais e o Filioque. A leitura do artigo poderá dar uma ideia vaga para o leitor que não as conhece, mas recomendo que se aprofunde sobre tais temas. Cada ponto em si poderia gerar toda uma série de debates e listo-os aqui apenas com fim de notas de resumo.


1) Todo o contexto da famosa passagem de Mateus 16:18 ("Tu és Pedro") forma um claro argumento contra a inovadora leitura que a sé romana sugere para fundamentar o conceito moderno de papado. O texto deixa bem claro que Simão está dizendo o que todos os Apóstolos crêem, está sendo, não um professor ou confirmador, mas um porta-voz do grupo. O que ele diz depende do grupo e não o contrário. Ele submeteu sua fé a fé dos apóstolos e não o contrário. O que Cristo fala dele, portanto, fala de todos os Apóstolos que ele *representa*. Seu novo nome, Pedro, assim como as chaves, são entregues a ele como efeito de sua defesa da fé ortodoxa. Se a interpretação romana da passagem fosse verdadeira, ou seja, se a autoridade do líder desse garantia sobrenatural a certas proclamações de dogma e moral "ex cathedra" dele, então Cristo teria perguntado aos Apóstolos quem Ele é, e ao ver a confusão reinar por falta de uma autoridade, daria a chave e a autoridade a Simão, mudaria-lhe o nome e faria novamente a pergunta "Quem dizeis que sou" e desta vez Pedro responderia corretamente dando fim aos debates entre os apóstolos. Mas é o preciso contrário que ocorre. A autoridade é dada a quem proclama a fé ortodoxa, no caso Pedro. Sem a fé ortodoxa, a autoridade perde não apenas sua legitimidade, mas seu poder. Tanto é assim que logo após o evento da chave, Pedro, provavelmente orgulhoso pela honra que acabara de receber, ousa ditar a Jesus como Ele devia agir, tentando-O a não seguir para a Cruz. Atitude aliás, muito semelhante a da sé romana que alega crer que a Eucaristia ortodoxa é verdadeiramente o Corpo de Cristo mas não de forma legítima por não estar submissa ao papado, ou seja, o próprio Cristo está realmente ali, mas está "irregular" porque não submisso ao Papa. Logo após o episódio das chaves, quando o portador das chaves diz a Cristo onde ele deve ou não deve estar, Cristo responde prontamente chamando-o não mais de "Pedro", mas de nada menos que "Satanás". Fica assim claro que os nome e autoridade de Simão não lhe são inerentes, mas *dependem* de que continuamente confesse a fé ortodoxa, humildemente servindo de porta-voz do colégio apostólico e nunca o contrário.

2) O próprio Pedro dá testemunho do significado da palavra "rocha" em suas epístolas. Os Pais da Igreja em ocasiões diferentes dizem que a rocha fundamental da Igreja seria Pedro, a fé ortodoxa ou Jesus, mas Pedro diz claramente e mais de uma vez que a rocha fundamental é Jesus Cristo. Como ele mesmo participou da conversa em Mat 16:18, ele é uma testemunha ideal para dar o significado da imagem da rocha. Se o seu objetivo fosse criar um líder do tipo "papal" na Igreja, Pedro poderia com humildade chamar atenção para o fato dele mesmo ser a rocha de que Jesus falava, mas ao contrário, numa época em que os seguidores começavam a criar divisões por causa dos apóstolos, como vemos nas Epístolas de S. Paulo, S. Pedro vem relembrar, junto com Paulo, que o signo e fundamento da unidade é o próprio Cristo.

3) Prefiguração da Liderança da Igreja 01: Prefiguração é um fenômeno religioso típico no qual a estrutura de um evento espiritual chave surge em algum outro evento simbólico anterior. Por exemplo, quando José, o filho favorito de Jacó, é traído por seus irmãos, liderados por Judá, e vendido por 30 moedas de prata, isso é considerado uma prefiguração de Jesus Cristo, o Filho de Deus, traído por Judas (outra forma do nome Judá), e é vendido por 30 moedas de prata. Difere da profecia, porque a profecia é a proclamação de um profeta a quem Deus concede certo conhecimento. A prefiguração assemelha-se mais aos pequenos tremores que antecedem o terremoto principal, tendo o mesmo padrão, mas sendo de menor intensidade.

No caso das chaves dadas a Pedro, Jesus referencia Isaías 22:15-25, onde um mau tesoureiro tem as chaves da sala do tesouro tomadas de si por não ter sido fiel. As chaves são então entregues a um novo tesoureiro, que recebe as mesmas honras e promessas do primeiro, com a implicação de que ele deve manter-se fiel para que não lhe aconteça o mesmo que ocorreu com o primeiro, ou seja, cair em desgraça. O que prefiguração mostra de relevante para nosso tópico é que (1) é possível ter as chaves e a autoridade e ainda assim perder ambas, como ocorreu com o primeiro tesoureiro; (2) é a fidelidade que garante as chaves e não o contrário.

4) Prefiguração da Liderança da Igreja 02: Nos Evangelhos, S. Pedro é apresentado mais de uma vez em paralelo a Judas. Judas é o traidor que não se arrepende, e Pedro é também um traidor, por ter negado Jesus, mas que se arrepende. Esse tema se repete no evento em que Pedro caminha sobre as águas, mas quando fraqueja na fé, perde o "poder" que Jesus lhe conferira. Uma vez mais, o poder não garante a fé, mas a fé é que sustenta o poder.

5) Jesus não apenas nunca afirmou que Pedro deveria governar ou ensinar os outros Apóstolos, mas Ele concretamente atribui esse papel ao Espírito Santo exclusivamente. A passagem em que Pedro diz sim três vezes ao Cristo mostra sua redenção dos três nãos, não tendo nada a ver com governança da Igreja.

6) O Sínodo Apostólico em Jerusalém foi presidido por Tiago e ao contrário de alegações de interpretações romanas, Pedro não teve a palavra final. Pedro estava errado em questões de moral concernentes a como se comportar em meio aos gentios e judeus. Seu papel entre os Apóstolos parece mais semelhante ao de um santo ancião em mosteiros ortodoxos do que semelhante ao de um abade, que no concílio teria Tiago como seu análogo. Ele tinha dons e um coração santo e perfeitamente contrito e por isso é que era referência entre os cristãos da época.

7) Até mesmo a atual sé romana admite que o papel do Papa não foi exercido ao longo do 1o milênio da forma que se alegou para ele no 2o milênio e ainda se defende hoje. Seu argumento é que se trata de um desenvolvimento legítimo, mas já que nenhuma das Igrejas com que Roma estava em comunhão jamais aceito isso, e nem mesmo igrejas heterodoxas que surgiram antes do cisma, claramente a doutrina papal romana não atende os critérios de catolicidade de S. Vicente de Lerins e portanto não é um desenvolvimento legítimo.

8) Não apenas há ausência de evidência para a doutrina papal romana. Há evidência positiva de que o papel de primaz da Igreja não tem a autoridade exaltada que Roma crê ter. O Papa nunca convocou ou presidiu nenhum dos concílios ecumênicos do 1o milênio sendo que o 5o aconteceu a despeito de o Papa estar residindo em Constantinopla onde ele se realizou, e ainda ter expressamente proibido sua realização. Além disso, o Papa Gregório I, que era ortodoxo, chegou a condenar especificamente o uso do título de "patriarca universal". A apologia romana alega que ele estava condenando o uso do termo por qualquer um que não fosse ele mesmo, mas essa restrição não aparece em nenhum trecho de sua carta e nem é vagamente sugerida pelo contexto. Ao condenar o uso do termo, ele de fato o faz para toda e qualquer pessoa, inclusive os bispos romanos não-ortodoxos que vieram depois dele.

9) A reforma legal feita pelo imperador Justiniano é inequívoca quanto ao papel e grau de poder do Papa. Ele é definido como "cabeça do colegiado de bispos", não de toda a Igreja. O primeiro detalhe importante é que é uma definição legal e não teológica. O segundo é que estipula um papel importante porém limitado em comparação ao que Roma hoje alega. O valor das reformas de Justiniano é que são um testemunho de primeira-mão sobre como as coisas funcionavam, da parte de pessoas que eram especialistas em leis, cânones e questões administrativas da época;

10) Ao contrário das alegações romanas, o Papa já ensinou heresias duas vezes: na questão do monotelismo, quando o Papa Honório chegou a ser condenado e anatemizado no concílio ecumênico posterior, e na questão do filioque. A própria sé romana rejeitou o filioque no Credo como heresia até 1014, quando foi inserido por questões cesaropapistas, por pressões de Henrique II na sua coroação como imperador do Sacro Império Germânico. Não apenas isso, mas a situação levanta a questão de qual papa ensinou erroneamente na questão dogmática do filioque, o que aceitou o filioque ou aqueles que obstinadamente se opuseram negando-o? Qualquer que seja a resposta, o conceito de infalibilidade papal cai aí mesmo.

11) O conceito de infalibilidade também afirma infalibilidade em termos de ensino de moral. Sabe-se que a forma mais poderosa de ensino é o exemplo, particularmente no caso da moralidade. Muitos papas, especialmente durante o chamado Século Obscuro (século X), foram menos que exemplares em termos de moralidade, o que demonstra que ensinaram coisas erradas através de seus maus exemplos.

12) Existe um exemplo bíblico do conceito de "ex cathedra", quando Jesus menciona que os fariseus sentam-se sobre a cadeira/trono/cátedra (dependendo da tradução) de Moisés. Isso demonstra que em termos de simbologia cristã, assim como muitos podem sentar-se no "trono de Moisés", ou seja, representando coletivamente a autoridade do profeta, muitos podem também sentar-se no trono de Pedro, isto é, todos os bispos. O paralelo também demonstra que Pedro é como "Moisés" entre nós, não como Cristo, pelo menos no que tange a autoridade na Igreja. Assim como Moisés guiava os escravos para a liberdade na Terra Prometida, Pedro foi responsável pela conversão de judeus e gentios, sendo o primeiro a recebê-los, como um profeta que vai a frente. E assim como Moisés foi substituído por um colegiado de juízes, Pedro foi substituído por um colegiado de bispos;

13) Alegações papais de supremacia e autoridade começaram a desenvolver-se na forma em que conhecemos hoje fundamentando-se em "provas" como as Doações de Constantino e os decretos de Pseudo-Isidoro, todos hoje sabidamente falsificações. Também fundamentavam-se em outro argumentos hoje conhecido como falso: que os "gregos" teriam alterado o grego para retirar o filioque. Hoje sabe-se que o filioque nunca esteve nos credos originais dos Concílios, sendo interpolação ocidental.

14) As alegações de jurisdição universal foram resistidas também no Ocidente. O Arcebispo da Sé Apostólica de São Tiago em Compostela opôs-se a tais alegações porém foi obliterado pelas forças papais;

15) Assim que surgem as alegações de supremacia ao início do século XI, o Ocidente começa a partir-se: ocorre o Cisma Ocidental, chegando a existir três papas concorrentes, surgem várias seitas neo-gnósticas proto-revolucionárias, o Anglicanismo e finalmente o Protestantismo. Na ausência da governança transcendente do Espírito Santo existente na Igreja Católica Ortodoxa, a busca da autoridade imanetizou-se, levando a todos esses movimentos que têm em comum a busca de uma nova fonte de autoridade: bispo, Escrituras, rei, conhecimento ou segredos cósmicos. O problema dos papas concorrentes foi decidido através de Concílio local no Ocidente, na última vez em que se reconheceu no Ocidente que o bispo de Roma era líder no Concílio, a ele submetido, mas não sobre ele.

16) Com o surgimento de tais novos desenvolvimentos e buscas na espiritualidade ocidental, as práticas começam a mudar drasticamente daquelas do primeiro milênio. Isso fica perceptível na música, arquitetura e arte, mostrando que surgira uma sensibilidade de estar no mundo diferente da anterior. Uma das características mais marcantes é o desenvolvimento de espiritualidades "intelectuais" e "românticas", sugerindo que a experiência coletiva da Cristandade ocidental já não consegui diferencia o nous/intelecto da mente (razão/emoção);

17) Um tipo negativo de evidência é o tipo de problemas que a sé romana não mais tinha. Se a Igreja deve continuar a mesma e sem mudanças da época Apostólica até hoje, devemos esperar que os mesmos tipos de problema continuem se repetindo sempre, e também que os grupos que se separem dela tenham pontos em comum que revelem sua origem comum:

a) a maioria das epístolas e até mensagens de Cristo no livro do Apocalipse se dirigem a igrejas locais, definidas por etnias e nacionalidades;

b) essas igrejas discutem entre si, até brigam e deixam de comungar umas com as outras precisando serem lembradas de permanecerem unidas. A situação descrita em (a) e (b) é exatamente a da Igreja Católica Ortodoxa e o "problema" que Roma pensa ter resolvido com sua forma centralizada de governo é apenas um atributo inevitável da forma da Igreja. Ao buscar abandonar o atributo, Roma acabou por abandonar o todo;

c) Apesar de tais problemas já existirem nos tempos apostólicos (como existem até hoje na Igreja Ortodoxa), nunca vemos em Atos, nas Epístolas ou no Apocalipse a recomendação de que se submetam a Roma ou Pedro ou o Bispo de Roma para restaurarem a unidade, o que seria o chamado natural, como Roma faz hoje. O fato de que essas relações não são resolvidas com chamados de obediência ao Papa ou a Roma evidencia que não é esse o papel do Primeiro-Entre-Iguais;

d) Os cismas e heresias que saíram da Igreja Ortodoxa: Arianos, Nestorianos, Coptas, Siríacos, Romanos, Velhos Crentes, Velho Calendaristas, esses dois últimos cismas conhecidos da Ortodoxia no 2o milênio, todos têm muitos elementos, especialmente litúrgicos, semelhantes, tanto que algumas pessoas chegam a não entender porque todas essas igrejas não se "unem". No caso de Roma, embora tenham saído cismas formalmente semelhantes, o segundo milênio é caracterizado por separações que são radicalmente diferentes: as igrejas da Reforma Protestante clássica. Essa diferença desses cismas para os cismas do primeiro milênio sugere que essas igrejas partiam de um ponto diferente do ponto que aqueles outros partiram.

18) Um dos principais argumentos da sé romana para seu modelo de primaz da Igreja é que, "embora tenham havido maus papas, nenhum ensinou erro". Mesmo que não houvessem os exemplos mencionados no item (10), teríamos que abandonar esse argumento por ser circular. "Como saberíamos que o Papa é infalível?" "Porque nunca nenhum ensinou nenhum erro". "Como sabemos que nunca nenhum ensinou nenhum erro?" "Porque todas as igrejas católicas sempre concordaram com ele". "Mas 4/5 das sé patriarcais do mundo apontaram heresias em seus ensinos no primeiro milênio..." "Isso significa que naquele momento ao menos não eram ou não agiam como católicas". "Como você sabe?" "Porque estavam discordando do que o Papa ensinou ou pelo menos não estavam entendendo". "Se discordavam, por que deveriam concordar?" "Porque ele é infalível no seu papel de ensinar dogma e moral". "Como você sabe?" -"Porque ele nunca ensinou nenhum erro". Ou a forma curta: "Confirmamos que o Papa é infalível porque ele nunca ensinou nenhum erro e confirmamos que nunca ensinou nenhum erro porque tendo sido ensinado pelo papa infalível nesse papel, aceitamos como sem erro."

19) O conceito de uma sé proclamar independência e "viajar sozinha", seja Roma, os Coptas Etíopes, Armênios, Indianos ou Siríacos é evidência de falta de catolicidade e e que não cumpre o sinal previsto por Cristo de seus seguidores seriam conhecidos por se amarem, isto é, por se manterem unidos;

20) Embora existam milagres que sugiram a santidade de indivíduos particulares, os milagres coletivos e visíveis de Roma dos últimos séculos sempre envolvem um chamado a retornarem a fé, especialmente os Eucarísticos que desde sempre foram um sinal de queda ou queda iminente da fé ortodoxa, o que sugere que se não se constituíram em heresia radical ainda, são ao menos um cisma e que necessitam retornar a plenitude da fé da Igreja Católica Ortodoxa, caminho que pela graça de Deus há de ser trilhado um dia, nem que seja pela conversão individual de cada um.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Teologia de Gênero (02) - Eva, a auxiliadora


por Sofia Matzarioti-Kostara

A palavra "auxiliadora" já pressupõe que Adão necessita de auxílio para fazer alguma coisa. O único trabalho a que o texto se refere é proteger e cultivar o Paraíso. Os primeiros intérpretes do texto sagrado entendiam que o trabalho no Paraíso não era manual, mas espiritual, significando um labor para a perfeição. De acordo com vários escritores cristãos, a pessoa humana foi criada fisicamente perfeita, mas espiritualmente imperfeita. St. Ireneus de Lyons acreditava que o primeiro homem e a primeira mulher não eram moralmente perfeitos desde o início porque, se fossem, suas ações não teriam qualquer significado moral (1). "Embora tenham sido criados à imagem e semelhança como potencialidade, eles se tornam a image e semelhança através do trabalho espiritual e da sua livre-escolha(2). "E a ordem de trabalhar não se refere a nenhum outro labor que não seja cumprir os mandamentos de Deus"(3). A mulher, portanto, foi criada para trabalhar junto com Adão para o crescimento espiritual de ambos. Por isso, de acordo com os Pais, é que Eva recebeu como punição ser governada pelo homem em Gên 3:16(4). Isto é, ao invés de auxiliar o desenvolvimento espiritual de Adão, ela se tornou uma tentadora e causou sua queda. " 

Depois da criação da mulher, Adão regozijou-se de que finalmente (νῦν) encontrara a ajuda que Deus lhe havia prometido. Ele então proclamou e profetizou o destino dessa unidade dos dois (5). Homem e mulher devem ser uma só carne, remoldando a face da humanidade para o que Deus originalmente desejava - uma natureza humana. Temos aqui a instituição do casamento com algumas intuições sociológicas inovadoras. No antigo Oriente Médio, a mulher devia deixar sua família e se juntar à do marido. Opondo-se a esse costume, Adão ordena que os homens deixem tudo e sigam suas esposas. Mesmo assim, essa unidade em uma só "carne" contém um elemento de transiência porque a "carne" é temporária e mortal. Portanto, o casamento é uma instituição deste mundo presente e não se estende a próxima vida. Para São João Crisóstomo, o homem e a mulher são partes do todo da humanidade; ambos são incompletos à sua própria maneira. Eles precisam um do outro com o fim de serem completos e sua perfeição depende da unidade dos dois(6). Na tipologia bíblica, Deus é o νυμφαγωγός(7) do primeiro casal e de todos os casais de todas as épocas. 

A Septuaginta continuou fiel ao texto hebraico original e traduziu a palavra adam (de adama, que significa chão, terra) com a palavra ἂνθρωπος (pessoa humana). Os autores mudam para o nome próprio Ἀδάμ (Adão) apenas no capítulo 2:16 porque desse ponto em diante a história da criação da mulher começa com o plano de Deus de que o homem não deveria ficar só. De acordo com alguns intérpretes, no texto hebreu, a palavra adam não é usada como nome próprio, mas como seu sentido literal de "humanidade" ou "pessoas"(8). Sendo assim, a mulher não teria sido criada do lado do homem (Adão) mas do lado da primeira pessoa humana. Assim, a proclamação de Adão de que a mulher (issa) fora criada do homem (is) faz parecer que isso é uma influência sociológica inserida no texto(9). Esse obstáculo para os intérpretes do texto hebreu deu origem a idéia de que a primeira pessoa humana fora criada como um ser andrógino, mas tal conceito jamais foi adotado pela teologia cristã. 

A criação singular da pessoa humana com imagem e semelhança de Deus é uma grande honra concedida por Deus à humanidade, mas é uma questão difícil para os intérpretes do texto. Embora a expressão dupla "besalmenu kidemutenu" em Gên 1:26 conecte a descritiva saelaem (figura plástica, imagem) com a abstrata demut (similaridade, semelhança)(10) apesar de terem sentidos diferentes, a tradução da Septuaginta indica o uso dos termos "imagem" e "semelhança" como intercambiáveis (11). A interpretação patrística, no entanto, compreende "imagem" como algo dado no ato da criação, enquanto "semelhança" é algo que tem que ser conquistado pela vontade humana trabalhando junto com Deus. O uso da palavra descritiva saelaem no texto não deve nos levar a dizer que se trata de uma tentaiva de antropormofização de Deus, mas ao contrário é uma teomorfização da pessoa humana(12). O ponto principal da narrativa é que a pessoa humana não é auto-sustentável, mas vem de Deus e vive uma vida transparente na sua presença. A humanidade veio a existir, compartilhando algo com Seu criador (Seu sopro(13)) e representando Deus nesse mundo de acordo com sentido original da palavra saelaem.(14) 

Depois da Bíblia, Tatiano foi o primeiro dos escritores cristãos a utilizar os temos "imagem e semelhança", e os compreendia como se referindo ao Espírito Santo o qual fez o homem compartilhar a imortalidade de Deus. Depois da queda, os seres humanos separaram-se do Espírito de Deus e se tornaram mortais(15). "Pois o homem foi feito de uma natureza intermediária, nem completamente mortal, nem inteiramente imortal, mas capaz de ambas"(16). De acordo com o professor John Romanides: "Perfeição moral e imortalidade (...) constituem toda a base da compreensão da imagem e semelhança de Deus e da antiga doutrina cristã da queda e da salvação"(17). A despeito de várias interpretações sobre a imagem e semelhança de Deus, nós podemos entendê-la como uma cruz com a dimensão horizontal se referindo à unidade da natureza humana (18) e a dimensão vertical se referindo a nossa relação com Deus (19). 

As criaturas amadas foram colocadas no Paraíso para desfrutarem da felicidade com apenas uma restrição. Havia um fruto que lhes era proibido. A árvore do “conhecimento do bem e do mal” é mencionada apenas no Gênese em mais nenhum lugar nas Escrituras. São Téofilo de Antioquia diz: “...a árvore do conhecimento em si era boa, seu fruto era bom. Pois não era a árvore, como alguns pensam, mas a desobediência que continha morte em si. Pois nada havia no fruto senão conhecimento; o conhecimento, porém, é bom quando é usado com discernimento”(20). No Antigo Testamento, o conhecimento não é teórico, distante do sujeito, mas inclui o sujeito (21) algumas vezes de um modo bem material como quando Adão conhece Eva “conheceu Adão a sua esposa Eva, e ela concebeu e deu à luz Cain”(22). Da mesma forma, no Antigo Testamento, conhecer Deus é ser conhecido por Deus e pressupõe uma relação mútua. Assim, o conhecimento de Deus significa a característica pessoal de um reconhecimento mútuo. O mesmo se aplica no caso do bem e do mal, e de como o pecado e o mal entraram na vida humana. 



[1] J. Romanides, The Ancestral Sin, (Ridgewood, 2002), 126.



[2] Irenaeus, Refutação citada em Romanides, The Ancestral Sin, 158.



[3] St. Theophilus of Antioch, To Autolycus, in Romanides, The Ancestral Sin, 125.



[4] «πρός τόν ἂνδρα σου ἡ ἀποστροφή σου, καί αὐτός σου κυριεύσει» Gên 3:16.



[5] «τοῦτο νῦν ὀστοῦν ἐκ τῶν ὀστέων μου καί σάρξ ἐκ τῆς σαρκός μου ‘ αὓτη κληθήσετε γυνή, ὃτι ἐκ τοῦ ἀνδρός αὐτῆς ἐλήφθη αὓτη’ ἓνεκεν τούτου καταλείψει ἂνθρωπος τόν πατέρα αὐτοῦ καί τήν μητέρα καί προσκολληθήσεται πρός τήν γυναῖκα αὐτοῦ, καί ἒσονται οἱ δύο είς σάρκα μίαν» Gên 2:23,24.



[6] Mais sobre a interpretação de Crisóstomo sobre o casamento em S. Papadopoulos, “Ὁ Γάμος: Μυστήριο Ἀγάπης καί Μυστήριο «εἰς Χριστόν» (Θεολογική προσέγγιση τοῦ μυστηριακοῦ χαρακτήρα τοῦ Γάμου)” no livro Ιερά Σύνοδος της Εκκλησίας της Ελλάδος, Ὁ Γάμος στήν Ὀρθόδοξη Ἐκκλησία, (Αθήνα, 2004).



[7] O que leva o noivo até a noiva.



[8] Pentiuc, Jesus the Messiah, 8.



[9] Ibid., 21.



[10] W. Zimmerli, Ἐπίτομη Θεολογία τῆς Παλαιᾶς Διαθήκης, Μετάφραση Π. Στογιάννος, Β΄ Έκδοση, (Αθήνα, 2001), 42.



[11] Pentiuc, Jesus the Messiah, 9.



[12] Zimmerli, Ἐπίτομη Θεολογία, 43.



[13] «καί ἐνεφύσησεν εἰς τό πρόσωπον αὐτοῦ πνοήν ζωῆς, καί ἐγένετο ὁ ἂνθρωπος εἰς ψυχήν ζῶσαν» Gên 2:7.



[14] C. Westermann, Genesis 1-1: A Commentary, trans. John Scullion (Minneapolis, 1984), 147-155.



[15] Romanides, The Ancestral Sin, 147.



[16] St. Theophilus of Antioch, To Autolycus, in Romanides, The Ancestral Sin, 125.



[17] Romanides, The Ancestral Sin, 111.



[18] Estamos todos conectados aos outros porque todos compartilhamos a imagem de Deus.



[19]Precisamos estar em comunhão com nosso Criador. Ver Pentiuc, Jesus the Messiah, 6, 13.



[20] St. Theophilus of Antioch, To Autolycus, in Romanides, The Ancestral Sin, 125



[21] Zimmerli, Ἐπίτομη Θεολογία, 185.



[22] «Ἀδάμ δέ ἒγνω Εὒαν τήν γυναῖκα αὐτοῦ καί συλλαβοῦσα ἒτεκε τόν Κάϊν» Gên 4:1.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Teologia de Gênero (01) - A Narrativa da Criação


Sofia Matzarioti-Kostara
Original: Pemptousia (http://pemptousia.com/2015/05/the-theology-of-gender-1-the-story-of-creation/)

A narrativa da criação apresenta os princípios básicos da vida e comportamento humanos. É a principal referência para o entendimento cristão das questões existenciais da humanidade. No livro de Gênesis, desdobra-se a relação peculiar dos seres humanos com seu Criador. Nele está contido o mistério do propósito do mundo, assim como o destino de nossa existência.

De acordo com o Gênese, Deus criou tudo no mundo para servir sua amada criatura, a pessoa humana. Os seres humanos são o propósito de toda a criação. Deus criou um ambiente perfeito para Sua criatura mais preciosa e queria compartilhar com ela Sua vida Divina. A criação da humanidade é um ato criador especial de Deus e que foi feito em estágios (1) em contraste com a criação de todas as outras coisas, que foram feitas imediatamente com uma só palavra. A importância da criação do homem é indicada pelo fato de que esse ato é precedido por um pensamento divino, de acordo com o qual o homem é criado segundo a imagem de Deus (2). Nenhum outro ser na história da criação é comparável com o cuidado especial que o Criador teve por essa criatua amada.

A perspectiva de Gênesis, a qual é a história primitiva do destino humano em todas as épocas, tem sido interpretada de modos diferentes, com pontos fortes e fracos em cada interpretação. Apesar do método de examinar o texto - linguístico, histórico, teológico, sociológico - e tentando sermos justos com o texto, quando o autor se refere aos princípios da vida humana ou das características humanas em geral, ele utiliza a palavra ἂνθρωπος (humano) sem distinção de gênero. Assim aprendemos que a humanidade (ἂνθρωπος) foi criada com bipolaridade de gênero (3). Ele(4) foi criado do pó, e recebeu o sopro de Deus em suas narinas (5). Deus pôs Sua criatura no Paraíso e pediu que ele o protegesse e cultivasse (6). Deus então ordenou a Adão que eles (7) não comessem da árvore do "conhecimento do bem e do mal", porque fazê-lo o mataria (8).

Em uma segunda perspectiva da criação, é realizada uma descrição detalhada da criação da mulher do lado de Adão. A criação da mulher é também precedida por um pensamento divino: Adão não deve ficar sozinho; Deus irá dar-lhe uma auxiliadora(10). Essa auxiliadora, de acordo com alguns intérpretes, reflete a vontade de Deus de ajudar Sua criatura e deve ser vista como uma providência divina e um cuidado por sua criação (11). Ainda assim, para outros, a palavra "auxiliadora", junto com a expressão "em harmonia com ele" (κατ᾿ αὐτόν), é interpretada como um argumento para apoiar a opinião de que a mulher foi criada para atender as necessidades do homem. Tal opinião não é fiel ao texto porque nas Escrituras a palavra "auxiliadora" pode se referir a alguém superior (Deus, anjos), inferior (animais) ou iguais (outro ser humano) à pessoa necessitada de ajuda (12). De fato, a mulher deve ser entendida como uma auxiliadora do homem, um ser de igual hierarquia, e ambos compartilham a responsabilidade de trabalhar juntos. Essa visão é apoiada pelo próprio texto, já que Adão buscava por uma auxiliadora que fosse "igual" a ele (ὃμοιοs)(14) entre as criaturas vivas que Deus colocara à sua frente. Essa mesma interpretação é dada por S. João Crisóstomo (15) que escreveu longos comentários sobre o Gênese e sobre o casamento.

[1] Veja mais em E. Pentiuc, Jesus the Messiah in the Hebrew Bible, (Mahwah, 2006), 5.

[2] «καί εἶπεν ὁ Θεός΄ποιήσωμεν ἂνθρωπον κατ΄ εἰκόνα ἡμετέραν καί καθ’ ὁμοίωσιν» Gên 1:26.

[3]«..καί ἐποίησεν ὁ Θεός τόν ἂνθρωπον, κατ’ εἰκόνα Θεοῦ ἐποίησεν αὐτόν, ἂρσεν καί θῆλυ ἐποίησεν αὐτούς» Gên 1: 27.

[4] "Ele" não se refere ao gênero masculino, mas expressa a palavra masculina "ἂνθρωπος" que se refere a todos os humanos.

[5] «καί ἒπλασεν ὁ Θεός τόν ἂνθρωπον, χοῦν ἀπό τῆς γῆς, καί ἐνεφύσησεν εἰς τό πρόσωπον αὐτοῦ πνοήν ζωῆς, καί ἐγένετο ὁ ἂνθρωπος εἰς ψυχήν ζῶσαν» Gên 2:7.

[6] «Καί ἒλαβε Κύριος ὁ Θεός τόν ἂνθρωπον, ὃν ἒπλασε, καί ἒθετο αὐτόν ἐν τῷ παραδείσω τῆς τρυφῆς, ἐργάζεσθαι αὐτόν καί φυλάσσειν» Gên 2:15.

[7] Mudado para o plural por que refere-se tanto ao homem quanto à mulher.

[8] «καί ἐνετείλατο Κύριος ὁ Θεός τῷ Ἀδάμ λέγων’ ἀπό παντός ξύλου τοῦ ἐν τῷ παραδείσω βρώσει φαγῇ, ἀπό δέ τοῦ ξύλου τοῦ γινώσκειν καλόν καί πονηρόν, οὐ φάγεσθε ἀπ’ αὐτοῦ’ ᾓ δ᾿ ἂν ἡμέρα φάγητε ἀπ᾿ αὐτοῦ, θανάτω ἀποθανεῖσθε» Gên 2:16-17.

[9] «καί ἒλαβε μίαν τῶν πλευρῶν αὐτοῦ καί άνεπλήρωσε σάρκα ἀντ᾿ αὐτῆς. Καί ᾠκοδόμησεν ὁ Θεός τήν πλευράν, ἣν ἒλαβεν ἀπό τοῦ Ἀδάμ, εἰς γυναῖκα καί ἢγαγεν αὐτήν πρός τόν Ἀδάμ» Gên 2:21,22.

[10] «Καί εἶπε Κύριος ὁ Θεός΄οὐ καλόν εἶναι τόν ἂνθρωπον μόνον΄ποιήσωμεν αὐτῷ βοηθόν κατ᾿ αὐτόν» Gên 2:18.

[11] Pentiuc, Jesus the Messiah, 15.

[12] Theodosios Haralampopoulos, Περί της Θέσεως της Γυναικός Έναντι του Ανδρός κατά την Ορθόδοξον Χριστιανικήν Εκκλησίαν καί περί Φόβου Θεού (Αθήνα: 2004), 7-9.

[13] É isso que significa a expressão “κατ᾿ αὐτόν”.

[14] «τῷ δέ Ἀδάμ οὐχ εὑρέθη βοηθός ὃμοιος αὐτῷ» Gên 2:20.

[15] «…Τό μέλλον δημιουργεῖσθαι ζῶον τοῦτό ἐστι περί οὗ ἒλεγε΄ “ποιήσωμεν αὐτῷ βοηθόν κατ᾿ αὐτόν”, ὃμοιον αὐτῷ φησι, τῆς αὐτῆς αὐτῷ οὐσίας, ἂξιον αὐτοῦ, μηδέν αὐτοῦ λειπόμενον…Οὐκέτι γάρ εἶπε “ἒπλασεν” ἀλλ᾿ “ᾠκοδόμησεν” ΄ἐπειδή ἐκ τοῦ ἢδη πλασθέντος τό μέρος ἒλαβε ΄καί, ὡς ἂν εἲποι τις, τό λεῖπον ἐχαρίσατο…καί τέλειον καί ὁλόκληρον καί ἀπηρτισμένον κατασκευάσαι, τό δυνάμενον καί προσδιαλέγεσθαι καί τῇ τῆς οὐσίας κοινωνία πολλήν αὐτῷ τήν παραμυθίαν εἰσφέρειν» “Εἰς Γέν., Ὁμιλία ΙΕ” PG 53, 120-122.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Ateísmo e Ortodoxia na Rússia Moderna


por Metropolita Hilarion (Alfeev)


Tradução Fabio L. Leite



Nesta fala, buscarei delinear a história do ateísmo na Rússia durante os últimos cem anos. Começarei apontando o tipo de ateísmo presente na Rússia antes da Revolução. Então direi alguma coisa sobre o desenvolvimento do ateísmo durante o período soviético. E finalmente concluirei com algumas observações concernentes à natureza do ateísmo russo pós-soviético.



Gostaria de iniciar com as seguintes questões. O que aconteceu para que o país conhecido como "Santa Rússia", com uma longa história de Cristianismo Ortodoxo, fosse transformado pelos bolsheviques em um período bem curto de tempo no "primeiro estado ateu do mundo?" Como é possível que as mesmas pessoas que aprenderam religão no ensino médio da década de 1910, com suas próprias mãos, destruíssem igrejas e queimassem santos ícones na década de 1920? Qual é a explicação para o fato de que a Igreja Ortodoxa, que era tão poderosa no Império Russo, fosse reduzida a quase zero pelos seus ex-membros?



Devo logo dizer que não posso interpretar o que aconteceu na Rússia de 1917 como um acidente, a tomada de poder por um pequeno grupo de vilões. Ao contrário, entendo a revolução russa como o resultado final de um processo que se desenvolvia no cerne da sociedade pré-revolucionária, e portanto, em medida considerável, dentro da Igreja russa, já que não há separação entre Igreja e sociedade. Eu alegaria que a revolução russa foi cria tanto da monarquia russa quanto da Igreja. As raízes do ateísmo pós-revolucionário devem ser buscadas na sociedade russa pré-revolucionária e na Igreja.



Já se disse que na Rússia houve batismo mas não houve iluminismo. De fato, no que tange ao século 19, fica claro que o iluminismo comumente estava em conflito com a religião: as massas de camponeses analfabetos mantinham suas crenças tradicionais, porém mais e mais pessoas educadas, até as que viviam em contexto puramente religioso, rejeitavam a fé e se tornavam atéias. Chernyshevsky e Dobroliubov são exemplos clássicos. Ambos vieram de famílias clericais, ambos tornaram-se ateus depois de estudarem em seminários teológicos. Para tipos como Dostoyevsky, a religião era algo que precisava ser redescoberta, depois de tê-la perdido como resultado de sua educação. Tolstói, por outro lado, chegou a um certo tipo de fé, mas continuou alienado da Igreja Ortodoxa. Fica claro quando estudamos o período pré-revolucionário, que havia uma enorme lacuna entre a Igreja e o mundo das pessoas educadas, a assim chamada intelligentsia, e tal lacuna apenas aumentava.



Mas às vésperas da revolução, tornava-se cada vez mais claro que o ateísmo tinha invadido também as massas das pessoas comuns. Berdyaev escreveu que naquela época, a baba(vovó) russa de vida simples, que supostamente devia ser religiosa, já não era realidade, mas um mito: a vovó era agora niilista e atéia. Eu gostaria de citar um pouco mais deste grande filósofo russo. Ele escreveu o seguinte em 1917, meses antes da revolução de Outubro:



"A nação russa sempre considerou-se cristã. Pensadores e artistas russos estavam inclinados até mesmo a tomá-la como uma nação que é cristã par excellence. Os eslavófilos pensavam que o povo russo vivia pela fé ortodoxa, a qual é a única fé verdadeira, contendo toda a verdade.. Dostoyevsky pregava isso. A nação russa é portadora de Deus... mas quando a revolução aconteceu... ela revelou o vazio espiritual do povo russo. Esse vazio era resultado de uma escravidão que tinha durado tempo demais, de um processo de degeneração do antigo regime que fora longe demais, de uma paralização da Igreja russa e uma degradação moral das autoridades eclesiásticas que durara demais. Já há muito tempo o sagrado fora exterminado da alma do povo tanto pela esquerda quanto pela direita, as quais prepararam essa atitude cínica em relação ao sagrado que agora se revela de modo tão grotesco".



Berdyaev culpa o regime czarista e a Igreja Ortodoxa pelo que aconteceu em 1917. Deixando de lado o primeiro, examinemos o papel da Igreja no período pré-revolucionário. Por um lado, ela ainda era a igreja do estado, extremamente poderosa e influente, penetrando em todos os níveis da vida em sociedade. Ainda existiam santos vivos, como João de Kronstadt e a vida espiritual florescia, pelo menos em alguns mosteiros. Por outro lado, a Igreja era governada por autoridades civis, ou até por figuras exóticas como Rasputin, e é verdade que estava paralizada em grande medida.



Recordo-me de ter lido um livro do Padre George Shavelsky, que fora protopresbítero das Forças Armadas Russas sob Nicolau II. Ele era membro sênior do Santo Sínodo, e dava seu testemunho de que o Sínodo estava realmente muito longe da vida do povo, que fazia muito pouco, se é que fazia, para evitar que a propaganda atéia se espalhasse entre as pessoas comuns. Para mostrar como era bem pouco o que restava da devoção tradicional do povo a Deus, Shavelsky cita o seguinte exemplo: quando um decreto imperial especial determinou que comparecer à Liturgia não era mais obrigatório para os soldados russos, apenas dez por cento deles continuaram indo à Igreja.



Outro testemunho do mesmo tipo é o do Metropolita Veniamin (Fedchenkov), que se tornou bispo do Exército Branco depois da revolução. Ele escreve que nenhum dos alunos da Academia Teológica de S. Petersburgo, onde ele havia estudado, sequer iam ver o Pe. João de Kronstadt, e que alguns de seus alunos eram ateus. Ele descreve uma atmosfera de frio espiritual dentro da Igreja Ortodoxa, uma falta de espírito profético. Ele diz quenão foi por acaso que surgiram pessoas como Rasputin: em um ambiente geral de indiferença quanto a religião, ele era uma figura carismática e assim foi aceito pelas autoridades eclesiásticas, que então o dirigiram até o palácio imperial.



O terceiro testemunho que gostaria de trazer aqui é de um tipo mais pessoal, é o do Pe. Sergei Bulgakov. Ele era filho de padre,e depois de estudar em um seminário teológico, tornou-se ateu, seguindo os passos de Chernyshevsky e Dobroliubov. Em suas notas autobiográficas, ele se pergunta como isso pôde acontecer, e responde: "Aconteceu, de alguma forma, quase de repente, e de maneira imperceptível, como algo tido por certo, quando a poesia da minha infância foi substituída pela prosa do seminário teológico... quando comecei a duvidar, meus pensamentos críticos não estavam satisfeitos com a apologética tradicional, mas ao invés, a consideravam escandalosa... minha revolta era fortalecida pela devoção compulsória: aqueles ofícios compridos com acátistos, e rituais devocionais no geral, não me davam satisfação nenhuma." O Pe. Bulgakov desistiu de sua religião facilmente, sem luta, e nem suas origens sacerdotais, nem sua educação teológica o ajudaram a resistir a tentação do ateísmo e do niilismo.



O quadro que temos quando lemos as memórias dos que viveram o período pré-revolucionário é de um profundo declínio na crença religiosa. Embora o Cristianismo Ortodoxo ainda fosse mantido como religião oficial da monarquia russa, tanto a sociedade como a Igreja estavam fatalmente contaminados pela descrença, pelo niilismo e pelo ateísmo. Até os seminaristas, futuros padres, oscilavam entre a religião e o ateísmo. Muitos cristãos comuns, se não a maioria, não tinha fé nenhuma, e foram eles que se voltaram contra a Igreja assim que a participação nela deixou de ser encorajada. A Igreja de uma só vez perdera a grande maioria de seus membros e continuou com um rebanho pequeno constituído dos que estavam dispostos a morrer por Cristo.



Sabemos o que aconteceu com tais fiéis da Igreja. Ou foram executados ou severamente perseguidos, e apenas alguns dentre eles sobreviveram.



Houve uma certa melhora na situação da Igreja durante e depois da II Guerra Mundial, mas a Igreja nunca recuperou a posição dentro da sociedade russa que ocupara antes.



Que tipo de ateísmo foi imposto ao povo russo pelo regime soviético? Não foi de fato descrença: foi, ao invés, uma crença muito forte na não-existência de Deus, em um futuro feliz nesta vida, na infalibilidade do partido comunista e de sua ideologia materialista. A figura quase-divina de Lênin (por muitos anos ao lado de Stálin, mas depois apenas ele) era dominante por toda parte, em todos os lugares, em todas as salas de todos os prédios públicos, fossem jardins de infância ou universidades, lojas ou hospitais. Lênin como deus, o partido único como única igreja, seus líderes (o Politbureau) como uma assembléia de santos, os trabalhos de Lênin como a Bíblia, etc. O povo soviético não recebeu ateísmo, mas uma pseudo-religião, uma religião do Anticristo. Assim Berdyayev estava bem correto em falar do caráter religioso do socialismo e ateísmo russos. Em que medida foi essa ideologia atéia aceita pelo povo, ou melhor, quantas pessoas aceitaram essa ideologia e qual porcentagem era capaz de resistir? Nas décadas de 1920 e 1930 o ateísmo russo viveu seu estágio mais militante: era muito ativo, agressivo e envolvia as massas do povo. No fim da década de 1960, porém, já tinha perdido muito do seu entusiasmo inicial: era tido como certo pela maioria, mas já não era seguido com fanatismo e zelo. Assim, em termos da qualidade do ateísmo russo, são os anos de 1930 que devem ser considerados seu clímax, mas quanto a números, acho que serão encontrados mais nas décadas de 1960 e 1970. Durante os 1930 ainda existiam as babushki (vovózinhas), que guardavam secretamente a fé que tinham herdado da época do tsar. Mas no fim dos 1970s, as vovós pré-revolucionárias já tinham na maioria morrido (com isso me refiro às que foram educadas antes da revolução), e seu lugar era tomado por aquelas que cresceram dentro do regime ateu.



Posso ilustrar o que disse sobre a qualidade do ateísmo russo com exemplos da minha própria família. Todos os meus avós nasceram antes da Revolução, mas foram educados depois dela: nenhum deles era um crente. Mesmo na década de 1980, quando quase todos os membros mais jovens da minha família, um depois do outro, vinham à Igreja para serem batizados, meus avós se mantiveram fora desse processo. Uma das minhas avós me disse uma vez: "Eu me sinto como Robinso Crusoé na sua ilha desabitada: todo mundo a minha volta vai à Igreja, e eu não." Ela tinha sido membro do Partido Comunista por mais de 50 anos e, suponho, na década de 20 deve ter sido uma atéia militante. Mas no início dos anos 80, de quando eu me lembro dela, ela não sentia nada contra a religião, mas nada em favor dela também. Seu ateísmo tinha se tornado completamente passivo: era tido como garantido e ela não pensava nisso.



Meus pais cresceram na sociedade atéia das décadas de 40 e 50 e nunca foram ateus militantes. Já em sua juventude rejeitaram a ideologia soviética e buscavam a verdade fora dela. Mas ainda existia uma pressão tremenda sobre eles por parte da sociedade na qual tinham que sobreviver, e tinham medo constante de que sua descrença na ideologia fosse descoberta e que eles seriam punidos. Minha mãe veio para o Cristianismo em meados da década de 70, mas não podia praticar sua religião abertamente. Ser abertamente religioso ainda significava ser expulso da sociedade atéia, e talvez perder o emprego. Foi em alguma casa secreta, e não em uma igreja, que eu fui batizado.



Eu cresci entre as décadas de 70 e 80, o qual certamente foi um período de declínio do ateísmo russo. Mas ainda era perigoso praticar a religião abertamente: por exemplo, eu teria sido expulso da minha escola, uma escola musical de elite, se tivessem descoberto que eu ia à igreja. Durante os onze anos de estudos naquela escola, eu não vi nenhum pupilo que fosse abertamente religioso. Era dado por certo que todo mundo era ateu.  Ao mesmo tempo, muitos dos meus colegas não compartilhavam a ideologia oficial e tinha idéias muito liberais: estavam afastados da Igreja, mas muitos deles também não acreditavam nas idéias comunistas também. Ainda era difícil acreditar abertamente em Deus, mas já era bem possível não acreditar na ideologia. A atmosfera na minha escola era bem tolerante, embora o nível oficial de ideologia comunista era mantido.



Assim, embora eu tenha crescido sob o regime ateu, eu nunca fui tão pressionado a ponto de não ser capaz de resitir: ao contrário, lembro de uma total ausência de medo e um maravilhoso sentimento de liberdade. Portanto, não fico surpreso que tenha sido predominantemente pessoas da minha geração que foram para as ruas de Moscou em agosto de 1991 para se despedir do regime comunista. Eles não estavam com medo porque cresceram durante o período de declínio e decomposição da ideologia comunista.



Uma das principais razões para a falência da ideologia atéia soviética foi que as pessoas simplesmente não acreditavam mais nela. Quando o ateísmo perdeu seu caráter religioso, tornou-se vazio e perdeu seu poder muito antes de ser oficialmente abandonado. 



E qual é agora, em resumo, a situação do ateísmo e da religião na Rússia, depois do colapso do sistema soviético?



Parece-me que, embora o número de crentes tenha aumentado enormemente nos últimos anos, a Rússia ainda está longe de ser um país cristão. Batizar-se, ser ortodoxo, tornou-se uma moda. Não me surpreenderia se a maioria das pessoas, quando perguntadas se são ortodoxas, dariam agora uma resposta positiva. Isso não significa, porém, que todas elas vão à Igreja. Significa apenas que a maioria deles adotou uma nova identidade exterior para se harmonizarem com o tal "reavivamente religioso". Eu lembro de perguntar uma adolescente que veio com sua mãe para ser batizada: "Você acredita em Deus?" "Não", foi o que ela respondeu. Tive então que perguntar, "Por que então você quer ser batizada?" "Bem, todo mundo tá se batizando hoje em dia", ela disse. Esse caso, um de muitos, ilustra que muitas pessoas vivem a religião de um modo muito superficial, às vezes até sem acreditar em Deus. Continuando interiormente ateus, tornam-se externamente ortodoxos.



A última pesquisa de opinião na Rússia mostra que embora exista um número relativamente pequeno de ateus convictos, cristãos praticantes estão longe de ser uma maioria. A maioria dirá "acredito em alguma coisa". Reconhecemos que existe algo "sobrenatural", mas também dizem que a fé religiosa não tem um papel muito importante em suas vidas. Existe um outro paradoxo: nem todas as pessoas que dizem ser ortodoxas acreditam em Deus. Alguns chegam a participar de organizações e movimentos ortodoxos sem praticar a religião.



Falar de um reavivamento religioso na Rússia contemporânea se tornou um lugar comum. Mas as pessoas divergem no entendimento do que significa esse reavivamento. Certamente há um reavivamento externo: muitas igrejas, mosteiros e escolas teológicas tem sido reabertas, os prédios estão sendo restaurados. Mas ainda é cedo para falar de uma restauração da alma russa. Não existe uma melhora da moral na Rússia contemporânea. Ao contrário, temos que admitir que os padrões morais tornaram-se ainda mais baixos do que costumavam ser sob os soviéticos. Não é isso uma indicação de que não existe um reavivamento interior da vida cristã, que as pessoas não adotam o cristianismo como uma norma de vida? Não é uma evidência gritante do fato de que o longamente esperado arrependimento, a metanóia como uma mudança de mentalidade para melhor, ainda não ocorreu na Rússia?



Alguns atribuem essa repentina degradação dos padrões morais à influência ocidental: é do Ocidente degenerado que vêm a pornografia, a prostituição e todo tipo de imoralidade. Esta é a nossa fuga: culpar a todo mundo, menos a nós mesmos. Mas a realidade é que, como Berdyaev disse em 1918, 'por amargo que seja... o povo russo é hoje menos religioso que muitos povos do ocidente... a cultura religiosa da alma nele é mais fraca.' Isso é verdade se por cultura religiosa entendermos não a participação em alguma organização ortodoxa de direita, mas primeiro de tudo viver de acordo com as normas da moralidade cristã.


Quando a 'perestroika' começou, a Igreja foi desafiada por expectativas muito altas da sociedade. Muitos acreditavam que a Igreja seria capaz de assumir o papel de liderança no reavivamento espiritual da nação. Temos que admitir que isso não aconteceu. A Igreja começou a "reviver" reconstruindo as paredes dos mosteiros (o que é uma tarefa realmente importante e difícil), mas não respondeu adequadamente à necessidade da iluminação moral e religiosa do povo. Os líderes da Igreja ganharam acesso às autoridades civis, mas até agora foram incapazes (com alguams exceções) de ganhar acesso ao povo comum, especialmente os que estão fora da Igreja. A Igreja Ortodoxa ainda está fechada em si mesma; ainda está mais ocupada com seus próprios problemas internos do que com as demandas espirituais da sociedade moderna.  No fim, as seitas protestantes ocidentais tomaram a iniciativa de iluminar os ex-ateus, e não é de surpreender que com sua atitude direta e algo insistente, estejam ganhando a simpatia de mais e mais pessoas comuns.



O ateísmo russo pode muito bem morrer algum dia, mas isso irá acontecer quando além de ter sido batizado, o país seja iluminado e nasça de novo. 



A Igreja Ortodoxa deve ter um papel central nesse renascimento espiritual. Mas isso só pode acontecer depois que ela se tornar verdadeiramente uma igreja da nação e não do estado, seja lá qual estado for. Ela deve ser uma igreja da nação, do povo. Para se tornar isso, a Igreja deve sair de sua concha, deve aprender a falar a língua que o povo fala, deve encarar as demandas da sociedade e respondê-las adequadamente.


No presente, nossa igreja luta para encontrar sua nova identidade na Rússia pós-comunista e pós-atéia. 



Existem, em minha opinião, dois perigos principais. O primeiro é o retorno a uma situação pré-revolucionária, onde havia uma Igreja do estado que se tornou cada vez menos uma igreja da nação. Se, em algum ponto do desenvolvimento da sociedade, tal papel for oferecido à Igreja pelo estado, seria um enorme erro aceitá-lo. Nesse caso, a Igreja será novamente rejeitada pela maioria da nação, como o foi em 1917. Os 70 anos de perseguição soviética foram uma experiência de fogo purgatorial para a Igreja russa, do qual ela deveria ter saído completamente renovada. O erro mais perigoso seria não aprender com o que aconteceu e retornar a uma situação pré-revolucionária, como alguns membros do clero desejam fazer hoje em dia.



O segundo erro é o da Ortodoxia militante, o que seria a contra-parte pós-atéia do ateísmo militante. Refiro-me a uma Ortodoxia que quer lutar contra judeus, contra maçons, contra a democracia, contra a cultura ocidental, contra o iluminismo. Esse tipo de Ortodoxia tem sido pregada até por membros chave da hierarquia, e tem muitos apoiadores.  Esse tipo de Ortodoxia, especialmente se ganhar apoio do estado, pode forçar o ateísmo russo para as catacumbas, mas temporariamente. Mas ele não desaparecerá até que haja uma transfiguração da alma, e a necessidade de viver de acordo com o Evangelho se torne a única mensagem da Igreja Ortodoxa russa.



Sua Eminência, o Reverendíssimo Metropolita Hilarion (Alfeyev) de Volokolamsk é bispo na Igreja Católica Ortodoxa russa, presidente do Departamento de Relações Exteriores da Igreja, membro permanente do Santo Sínodo do Patriarcado de Moscou, teólogo, historiador da Igreja e compositor. É também autor de diversos livros sobre teologia dogmática, patrística, e história da igreja, com artigos em várias  línguas, bem como compositor para coro e orquestra.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Gula 2.0 - A Idolatria da Alimentação Saudável



Artigo completo no NATIONAL POST: http://news.nationalpost.com/life/food-drink/the-new-religion-how-the-emphasis-on-clean-eating-has-created-a-moral-hierarchy-for-food

Sarah Boesveld, 30 de maio de 2015
Edição e Tradução: Fabio L. Leite, 03 de junho de 2015

McCann é professora de religião e cultura na Universidade de Nipissing, ao norte de Ontário, e confessa que é culpada de esnobismo alimentar. A vegetariana admite que sentiria nojo só de ver um pedaço de carne muito perto de sua salada na geladeira.

A professora é uma dos vários acadêmicos apresentando trabalhos semana que vem no Congresso de Humanas e Ciências Sociais em Ottawa, examinando como a explosão de "alimentação saudável" - sejam comidas cruas ou sucos, paleodieta, regimes sem glúten ou veganismo fervoroso - criaram uma hierarquia moral da alimentação.

Ela argumenta que o aumento nos movimentos relacionados a comida coincidiu com o declínio da religião na sociedade, com muitas pessoas buscando antigos valores como pureza, ética e bondade, mas dessa vez nos seus hábitos alimentares. Mas, esses movimentos tendem a encorajar os mesmos comportamentos que primeiramente afastaram as pessoas da religião: julgamentos, uma pretensão de superioridade moral, e a mentalidade de nós-contra-eles. Ela acrescenta ainda que muitos buscam um senso de realização que não pode ser satisfeito com comida.

O relacionamento entre comida e virtude tem raízes profundas. Morder uma maçã no Éden, foi, no final das contas, a escolha moral e fatal de Eva. Muçulmanos e judeus evitam carne de porco. Hindus e rastafaris são vegetarianos.

Alan Levinovitz, professor americano de filosofia e religião, argumenta em seu livro "The Gluten Lie and Other Myths About What You Eat" (A mentira do Glúten e Outros Mitos Sobre o Que Você Come), argumenta que embora a maioria de nós tenha deixado de lado tais restrições alimentares, ainda existe uma tendência na cultura a associar valores morais com comida. 

A forma como categorizamos os alimentos como virtuosos ou poluidores é complexa. Por exemplo, como Levinovitz explicou em uma entrevista com o The Atlantic nesse mês, "no fim do século XVIII, as pessoas consideravam que o açúcar fosse ruim" e isso tão logo ele surgiu na Europa. Era assim porque era considerado prazeroso, e por isso mesmo, praticamente um pecado, embora a opinião fosse diferente sobre a doçura do mel, considerada mais "natural".

Entretanto, segundo McCann, na medida em que religião decaiu, nossa obsessão com a pureza do que está em nosso prato aumentou. "É mais subconsciente", ela diz, mas é algo motivado por um tipo de "impulso religioso" que não é reconhecido como tal.

O fervor com o que é considerado "bom" ou "mau" na comida pode ter uma nuance messiânica. Escolher o que deveríamos comer se torna cada vez mais complexo: não basta comer alimentos genericamente saudáveis? Eles também tem que ser ecologicamente sustentáveis? É suficiente limitar a ingestão de carne ou precisamos nos abster completamente para sermos virtuosos?

McCann destaca em sua apresentação que "se você acha que é o puro (por causa do que você come), então alguma outra pessoa é a impura", ela diz. Quanto melhor nos sentimos sobre o que nós comemos - seja porque é ético, saudável ou local - mais tendemos a julgar os outros pelo que eles comem. Ou pior, pelo que achamos que eles são por causa do que comem".

Não é à toa que dizemos 'sou vegetariano' ao invés de 'como vegetais'.

"Dá uma sensação de virtude," diz McCann. "Sou uma pessoa virtuosa, estou no controle do meu corpo, eu consigo discipliná-lo e *você* não."

Parte do apelo da alimentação virtuosa é que nos oferece uma sensação de controle em um mundo fora de controle, diz Helen Zoe Veit, professora na Universidade Estadual de Michigan e autora de Modern Food, Moral Food.
National Post